Um negro e o regime da nova escravatura
Márcio José dos Santos
Geólogo – Paracatu - MG
“A escravatura para o meu povo veio através dessa empresa, uma nova escravatura. Uma escravatura que não te obriga a trabalhar, não te bate, mas te impede de viver conforme você vivia”, declarou Robson Ferreira da Silva.
Quando a transnacional Rio Tinto Zinc se instalou em Paracatu – MG, em 1987, com o nome de Rio Paracatu Mineração - RPM, havia aqui uma comunidade tradicional de garimpeiros, que extraíam o ouro de forma artesanal. Na maioria, esses garimpeiros eram descendentes de escravos, que se fixaram próximos do Morro do Ouro e das margens dos córregos Rico e São Domingos. Naquela época, atraídos pelas notícias da quantidade fabulosa de ouro que iria ser produzida pela RPM e também forçados pela condição socioeconômica em que estava o País – inflação e desemprego acentuados – mais de duas mil pessoas chegaram à cidade, vindos de diversas regiões. Não vieram para a prática do garimpo artesanal, mas para o garimpo mecanizado, que se instalou ao longo do Córrego Rico. Além de extremamente agressivo à natureza, pela intensidade e rapidez do processo de extração, o garimpo mecanizado introduziu um elemento extremamente nocivo, o mercúrio para amalgamação, com queima ao ar livre. Acresce-se ainda a instabilidade social provocada pela leva de aventureiros que chegaram a Paracatu, criando um clima de ameaça.
Entretanto, até a proibição do garimpo, que ocorreu no início da década de 90, jamais os órgãos do governo, nas três esferas da administração pública, tomaram providências de organizar, orientar e mitigar as ações do garimpo, sobretudo no que se relaciona a Educação Ambiental e a introdução de melhores práticas de trabalho. O Estado e a imprensa desenvolveram uma campanha alarmista sobre os perigos do mercúrio, veicularam notícias sobre o grau de contaminação sem mostrar uma única prova, e omitiram o fato de que havia, já naquela época, tecnologia para reduzir, em 99%, as emissões de mercúrio no processo de queima do amálgama. Ao invés de tratarem o garimpo mecanizado como problema socioambiental, trataram-no como caso de polícia, utilizando a força militar, ameaças, agressões e intimidações.
Uma Associação de Garimpeiros foi criada com o intuito de dar solução técnica ao problema da contaminação do mercúrio. Entretanto, os diretores dessa Associação nunca conseguiram sequer serem recebidos pelas autoridades públicas, seja o então Prefeito de Paracatu, o DNPM ou a FEAM. Aquela situação de descalabro socioambiental bem que servia aos propósitos do grande capital, pois desviava as atenções do enorme impacto ambiental que seria produzido pela instalação da mina a céu aberto da RPM junto à zona urbana de Paracatu. A transnacional se apresentava então, como uma empresa “limpa”, única capaz de extrair a grande riqueza mineral da cidade sem causar malefícios, criando empregos e promovendo o desenvolvimento econômico e social. Ninguém, ou quase ninguém, percebeu e os órgãos de licenciamento ambiental se fizeram cegos aos devastadores impactos negativos que iriam ser produzidos, a curto e a longo prazo, pela mineradora: destruição de nascentes, liberação de arsênio e metais pesados, uso de cianeto, geração de quantidade absurda de rejeito tóxico que iria assorear por completo os vales, expulsão de moradores, destruição de comunidades tradicionais, agressão ambiental aos bairros periféricos etc.
A curto prazo, logo imediatamente, um enorme impacto foi causado sobre as comunidades tradicionais, que hoje são reconhecidas como quilombolas, as quais utilizavam secularmente o garimpo artesanal como fonte de complementação de renda. Para esses descendentes de escravos, grande parte analfabeta e sem qualificação para assumir os empregos que poderiam ser criados no município, a proibição do garimpo teve efeito devastador. Suas fontes de renda, além do garimpo artesanal, eram agricultura de subsistência, colheita de frutos do cerrado para produção de doces ou a venda “in natura”, extração de lenha para comercialização na zona urbana e trabalho informal e ocasional nas fazendas (bóias-frias) ou nas residências urbanas (domésticas ou lavadeiras). Mas era o ouro do garimpo, colhido na bateia, que dava condições de comprar mantimentos e roupas; nunca época em que a inflação deteriorava o valor do dinheiro e aviltava os salários, o ouro tinha grande poder na sustentação das comunidades quilombolas.
A proibição do garimpo, incluindo-se o garimpo artesanal, não agressivo à natureza, atendeu prontamente a dois objetivos do grande capital: o de “limpar a área” para a atuação da empresa transnacional e a de gerar mão-de-obra barata para a expansão da monocultura de grãos. A partir daí e durante muitos anos Paracatu liderou a produção de grãos em Minas Gerais, hoje está em 4.º lugar. Aqueles descendentes de escravos, proibidos de garimpar ouro na terra de seus ancestrais, foram fundamentais para esparramar agrotóxicos nas lavouras, com risco da própria vida, e fazer colheita em condições degradantes, conforme atestam várias autuações do Ministério do Trabalho, que inclusive denunciou práticas condizentes com o regime de escravidão.
Um documentário produzido em 2008, Ouro de Sangue, de autoria de Sandro Neiva e Alessandro Carvalho, aborda, de forma ampla e clara, o impacto socioambiental produzido pela mineradora, já então denominada Kinross, a substituta canadense da inglesa RTZ. Neste documentário temos vários depoimentos das pessoas atingidas pelo empreendimento e, entre eles, um depoimento contundente de um quilombola da comunidade São Domingos: “A escravatura para o meu povo veio através dessa empresa, uma nova escravatura. Uma escravatura que não te obriga a trabalhar, não te bate, mas te impede de viver conforme você vivia”, declarou Robson Ferreira da Silva.
Robson estava profetizando o seu futuro! Logo depois, perdeu o emprego na Prefeitura, ficou desempregado, condição em que se encontra até hoje, pois não é fácil, para alguém que se posicionou tão desabridamente contra a mineradora Kinross, conseguir emprego nesta cidade. Em sua condição de miséria, sem poder sustentar a família, Robson passou a faiscar clandestinamente na área da Kinross, ou melhor, na área de seus antepassados. Às vésperas do Ano Novo, 28 de dezembro de 2011, lá estavam Robson e um companheiro da mesma comunidade, Éris Ribeiro Ferreira, lutando pela sobrevivência, bateia na mão, quando foram capturados pelos seguranças da Kinross. O "Grande Irmão" tem seus olheiros, que denunciaram a atividade clandestina. Ambos foram entregues à Polícia, que os levou à prisão. O companheiro foi logo solto, mas com Robson não se pode ter essa consideração, afinal há muito tempo que ele se tornou um alvo bastante visado. O pedido de soltura foi negado pelo juiz e a sua liberdade teve que ser buscada em Belo Horizonte, através do Ministério Público. Despesas que sua mãe idosa e sem recursos precisou cobrir com a ajuda de amigos.
Ontem, 10 de janeiro, Robson saiu da prisão, para responder em liberdade pelo crime de batear ouro na terra dos seus antepassados, na terra quilombola. Agora, de volta à sua família, Robson encara o futuro com muitas dúvidas: quais as oportunidades para um negro nesta cidade onde o poder das grandes famílias de “coronéis” aliou-se, subalternamente, ao grande capital transnacional, que passa por cima de quaisquer considerações legais e humanitárias para impor e estender o seu domínio?
Quais as chances de um negro pobre no regime da nova escravatura?
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