sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

‘Reluzente e imperecível’ é o genocídio do ouro

LD Dr.med. D.Sc. Sergio U. Dani

Resumo: Genocídio é um crime recorrente na história. A motivação comum entre os genocidas de todos os tempos é tomar posse dos territórios e riquezas das vítimas que encontram pelo caminho. Para o genocida, enriquecimento e poder são motivações bastante fortes para justificar as matanças. O biocídio ou matança dos sistemas de vida da terra, e o geocídio ou devastação da própria terra constitutem formas amplificadas de genocídio que se tornaram comuns no mundo globalizado. Enquanto o genocídio geralmente compromete a sobrevivência de grupos étnicos ou culturais, o geocídio compromete a sobrevivência da humanidade como um todo. Talvez o maior genocídio da história esteja sendo promovido pela mineração de ouro em larga escala. Para obter um punhado de ouro, poderosas mineradoras transnacionais aniquilam comunidades tradicionais, despejam milhões de toneladas de pó, lama e gases venenosos no ambiente, sufocam nascentes de água e seus vales, poluem rios e mares, envenenam e matam plantas, animais e pessoas. O rastro da destruição e seus venenos permanecem ativos por séculos e milênios. O geocida é um genocida que cospe no prato em que comeu.


Figura 1 │ Anúncio da propaganda sarcástica da empresa Degussa no jornal alemão ‘Die Zeit’ com o intuito de estimular a compra de ouro. No cartoon, três feiticeiros preparam uma mistura diabólica de ingredientes incluindo um osso semelhante ao fêmur humano. Ao fundo, um sujeito engravatado explica o que se passa: ‘Ah, o senhor sabe, o valor dos depósitos em ouro é superestimado. Nós temos aqui nossos métodos especiais para um perfeito mix de investimento’. Fonte: Die Zeit, N. 48, 21.Nov.2013, Seite 26/Wirtschaft.

"We find ourselves ethically destitute just when, for the first time, we are faced with ultimacy, the irreversible closing down of the earth's functioning in its major life systems. Our ethical traditions know how to deal with suicide, homicide and even genocide, but these traditions collapse entirely when confronted with biocide, the killing of the life systems of the earth, and geocide, the devastation of the earth itself." –  Thomas Berry

Para obter cada grama de ouro da mina a céu aberto localizada no perímetro urbano de Paracatu, Brasil, a mineradora canadense Kinross Gold Corporation (TSE-K; NYSE-KGC) explode duas toneladas e meia de rocha dura, destrói e polui nascentes de água potável e territórios de povos tradicionais reconhecidos pela Constituição Federal do Brasil, mata membros dessa comunidade a tiros de arma de fogo e envenena milhares com a poeira que lança sobre a cidade e a região.

Em cada tonelada de rocha da mina de ouro da Kinross em Paracatu existe um kilo de arsênio inorgânico, um veneno perigoso quando liberado da rocha para o ambiente. Basta um grama de arsênio inorgânico para matar ou adoecer gravemente sete pessoas adultas. O peso virtual ou pegada ecológica de cada grama de ouro que a Kinross retira de Paracatu equivale a 2,5 toneladas de rocha e 2,5 kg de arsênio inorgânico, uma dose letal para 17.500 seres humanos.

Até o ano 2010, a Kinross já havia liberado cerca de 300 mil toneladas de arsênio inorgânico das rochas da mina de Paracatu. Ao todo, a mineradora deverá liberar 1 milhão de toneladas desse veneno nos próximos 30 anos de mineração. Essa quantidade de arsênio equivale a uma dose suficiente para matar 7 trilhões de seres humanos. Os defensores da mineradora argumentam que apenas uma parte ‘ínfima’ desse veneno está bioacessível: cerca de 4%, equivalente a uma dose letal para ‘apenas’ 280 bilhões de pessoas.

Blindada contra os protestos das suas vítimas e apoiada numa rede de corrupção, a mineradora continua sua obra macabra. A rocha explodida é carregada por gigantescos caminhões fabricados para a Kinross pela empresa norte-americana Caterpillar/Bucyrus até um britador, onde a rocha é triturada. Dali a brita segue por uma esteira rolante até um gigantesco moinho construído para a Kinross pela alemã Siemens. No moinho, a rocha é pulverizada. O pó da rocha é misturado com água contendo diversas substâncias tóxicas e corrosivas, entre elas o cianeto de sódio fornecido para a Kinross pela norte-americana DuPont. A hidrometalurgia produz lingotes de uma mistura metálica contendo ouro, prata, cobre e ferro. O ouro é ‘purificado’ a partir desses lingotes por empresas como Degussa/Umicore. Finalmente, o ouro é vendido pelo mundo afora, transformado em lingotes, barras, moedas e jóias ‘reluzentes e imperecíveis’. Em Paracatu, fica o lixo da mineração a distilar um chorume macabro, a água podre do cadáver da rocha, o suco hediondo do lixo da mineração.

Uma aliança, uma moeda ou uma barra de ouro reluzente são leves de carregar. Mas seu peso de destruição, poluição, doença e morte é insustentável. A mineração hedionda da Kinross em Paracatu um dia termina, mas o seu chorume macabro permanece por séculos e milênios, espalhando-se lentamente para o resto do mundo.

Nota: 
No Brasil a Lei no. 2.889, de 1 de outubro de 1956 define o crime de genocídio e dá suas penas. É considerado crime de genocídio: Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo. A lei não prevê a existência de genocídio culposo mas a imprudência, imperícia ou negligência nos cuidados exigidos para evitar lesão à saúde e dano ao meio ambiente podem causar o mesmo resultado previsto na lei para o genocídio doloso (com intenção de causar lesão). O genocídio culposo não gera processo criminal, mas gera a obrigação de indenizar.