quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A Voz do Quilombo


A cultura negra é exibida como folclore e destruída pelas políticas públicas

Márcio José dos Santos

Conheço Gilberto e sua família há muitos anos, mas só recentemente soube da sua atuação no movimento quilombola. Gilberto Coelho de Carvalho é Diretor Administrativo da Federação Quilombola do Estado de Minas Gerais, a (N`GOLO). Nasceu na comunidade Porto do Pontal, que fica a 50 km de Paracatu, na margem do Rio Paracatu. Nesta entrevista ele nos fala de suas decepções e esperanças, mas sobretudo revela a firme disposição de luta pelos direitos que a Constituição Brasileira consagra ao povo negro, mas que ainda lhes são negados.


Márcio - Quais são as reivindicações do Movimento Quilombola em Paracatu?
Gilberto - Os principais problemas são a titulação das terras das comunidades quilombolas, a garantia da manutenção das pessoas no território e a preservação do patrimônio histórico-cultural. Entretanto, aqui em Paracatu, as dificuldades são enormes, por conta da destruição das comunidades promovida pela Kinross. Ela já conseguiu remover as populações quilombolas de duas comunidades – a de Machadinho, para a construção de uma barragem de rejeitos, e a de Amaros, para retirada de terra para o barramento. Ali, para a gente reivindicar alguma coisa agora, seria só uma compensação.

M. - Quais as principais dificuldades que as comunidades quilombolas de Paracatu têm enfrentado?
G. - Há o descaso das autoridades públicas, que vêem as coisas acontecerem e fecham os olhos. Também é preciso uma mudança de atitude de alguns membros das comunidades. A Kinross, enquanto se expande na ocupação dos territórios, oferece algumas migalhas e cria uma expectativa que ilude certas pessoas, enfraquecendo a luta pela causa. E com o apoio do poder público!

M. - Quando você fala em “poder público”, há alguma diferença nas diversas instâncias do poder na maneira como vocês são tratados?
G. - Olha, desde 2003, quando iniciamos o processo de reconhecimento das comunidades quilombolas, nenhum vereador esteve ao nosso lado. O mesmo posso falar dos prefeitos e dos deputados que nos representam. O Ministério Público deveria atuar em defesa dos territórios das comunidades, porém o que a gente vê é o Ministério Público de Minas Gerais fazer reunião com a mineradora, mas defender o território ele não tem feito. Quando a gente vê em outros estados o Ministério Público coloca prazos para ser regularizado o território. Mas, aqui em Minas, temos mais de 460 comunidades quilombolas e apenas duas receberam titulação das terras. Então, para mais de 460 comunidades, 126 processos abertos no INCRA, temos apenas duas comunidades tituladas? Tem alguma coisa errada nisso!

M. - As comunidades quilombolas conseguiram construir alianças políticas fora do movimento?
G. - Temos o CEDEFS – Centro de Documentação Elói Ferreira da Silva – que está nos apoiando na elaboração de um projeto para beneficiar as comunidades. Também o Escritório de Direitos Humanos, que é do Governo, tem nos apoiado. Nossa experiência com ONGs não é boa. Uma delas, há um tempo, fez projetos para beneficiar as comunidades com cursos de capacitação, o recurso veio e não foi empregado da maneira correta. Em Vazante foram cerca de três milhões e setecentos mil, que vieram do governo para serem utilizados na comunidade Bagres, que tem apenas cinqüenta a sessenta famílias. É muito dinheiro para aplicar em uma comunidade! O que foi feito lá não corresponde à verba recebida, portanto...

M. - Quais os apoios recebidos ou não, participação do Estado, do Ministério Público e de parceiros da sociedade civil?
G. - Uma propaganda mal intencionada quer nos apresentar como “sem-terras” querendo invadir terra de quem está produzindo. Isto é absurdo, pois só reivindicamos a titulação das terras que são de comunidades tradicionais. Na verdade, a terra é nossa; apenas precisamos do título. A lei diz que onde tiver um remanescente de quilombo ocupando sua terra o Estado tem que emitir o título. O Estado de Minas Gerais tem feito, através do ITER, a entrega de títulos individuais, não só a quilombola, mas a não-quilombola que mora no território quilombola. Porém, dentro do que está na lei, o título tem que ser coletivo, para a comunidade tradicional. O ITER tinha um recurso de cem mil reais por ano para trabalhar com a questão quilombola. Por dois anos esse recurso foi devolvido, porque, segundo eles, não tinha demanda. Com mais de 460 comunidades para poder trabalhar!

M. - Descreva os conflitos que cada comunidade quilombola de Paracatu tem tido com a RPM/Kinross. Sabe-se que os quilombolas do Machadinho fizeram negociação com a Kinross e venderam as terras.
G. - Ora, sob qual condição? O Estado atuou nessa questão concedendo licença para a Kinross construir uma barragem; agora, como é que você deixa construir uma coisa que não seja para usar depois? Houve pressões e ameaças da mineradora: “se vocês não venderem, vão ficar debaixo da lama!” Como é que eles iam conseguir resistir? Era impossível, não é? No caso do São Domingos, o conflito é por causa da água e tudo aquilo que está em torno, porque está muito próximo à mina. Já aconteceu de morrer gado, a cachoeira que eles tinham acabou. Tem um poço artesiano, mas ele não é suficiente para abastecer a comunidade. A poluição está acontecendo. Então, com o decorrer do tempo, eles vão ter que sair dali, porque a mina está chegando a tal ponto que não tem como eles ficarem perto. Agora, eles vão sair dali pra onde? Ali é onde eles têm costume de viver, têm a tradição deles.

M. - Sei que diversos moradores de São Domingos ainda faiscavam naquela área, quando a RPM se instalou. Como é que isso ficou?
G. – Acabou-se. Quando começou a mina, no final dos anos 80, a cidade inteira garimpava, tanto no Morro do Ouro quanto nos leitos do Córrego Rico e do Córrego São Domingos. Mas, como se começa uma mineração como essa da Kinross e por sua causa acaba o garimpo, da noite pro dia? Havia comentários que a mineradora ia empregar. Hoje a gente vê que o garimpo manual é que dava sustento para muitas famílias, quilombolas e não-quilombolas. Mas isso ficou proibido, acabou-se, sem as pessoas saberem a fonte de onde iam tirar dinheiro para se alimentarem. Nada foi feito para essas pessoas gerarem renda.

M. - A Kinross trouxe, no processo de expansão, muita gente de fora. Não se tentou aproveitar a mão-de-obra local que está ociosa?
G. - Não, pela forma que se deu: tinha que encaminhar um currículo mostrando a capacitação. Como uma pessoa que trabalhava num garimpo manual ou numa roça teria capacitação para trabalhar num empreendimento daquele? Então, não tinha mão-de-obra qualificada, mas a culpa não é da população, a culpa é de quem veio querendo mão-de-obra qualificada e que poderia ter feito treinamento desse pessoal. Se realmente quisessem empregar essas pessoas, por que não deram treinamento, se é uma coisa simples e barata pra ser feita? Foi mais uma forma de exclusão dessa população.

M. - No aniversário da cidade, em 20 de outubro, vimos um desfile na Av. Olegário Maciel, mostrando o patrimônio cultural da cidade, com destaque da cultura negra. Como você vê esse processo de exposição de uma coisa que está sendo destruída?
G. - A cultura negra é exibida como folclore e destruída pelas políticas públicas. A Prefeitura quer colocar a cultura negra como atrativo turístico, mas, no nosso dia-a-dia, cadê essa cultura? Ela só tem que ser mostrada no aniversário da cidade? Não, ela tem que ser mostrada no dia-a-dia e passada de geração em geração. Se ela não é mostrada no dia-a-dia, quem vai dar continuidade a ela? O problema começa na área da educação: nenhuma das cinco comunidades negras do município tem escola. Enquanto isso, o governo municipal cadastrou escolas da cidade como sendo quilombolas. Isto não é bom, porque a escola deveria estar lá na comunidade. Vou explicar: o município recebe 22 centavos por aluno/dia, para a merenda escolar; mas quando a escola é quilombola esse valor dobra. Portanto, o governo federal envia um recurso para o município aplicar na comunidade quilombola, mas esse recurso não vai para as crianças quilombolas. Isto é desvio de recurso! As comunidades Porto do Pontal, Cercado, Amaros e Machadinho não têm escola. A comunidade São Domingos tem escola, mas está fechada: uma comunidade que surgiu antes de a cidade ser chamada Vila de Paracatu do Príncipe não tem escola funcionando! É só um dos aspectos da política pública contra as comunidades tradicionais. Está previsto em lei que, não só na escola quilombola, mas na escola em geral, a matéria deve conter a história da cultura afro-brasileira, de maneira correta e não mostrando o negro sempre na condição de escravo, como é exibido nos desfiles. Aí, quando se fala em cultura, quem é que vai querer a cultura da população negra vendo a gente como escravo?  A escola quilombola é necessária não apenas para preservar nossa história e cultura, mas principalmente para fortalecer a identidade negra. Ser quilombola é para quem tem orgulho de ser negro! Nossos antepassados conseguiram, com muita dificuldade e luta, manter a cultura negra, e ela ainda sobrevive pelo poder da comunidade. O povo negro merece mais respeito por parte do conjunto da sociedade, pois somos uma grande força na sustentação  do Brasil.

Um comentário:

  1. Vejo que a população não tem interesse em coisa boa, essa entrevista mostra a realidade de Paracatu na atualidade só pensa no lucro e não na população em geral.
    Pelo que percebi a população NEGRA não tem apoio algum nessa cidade

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