Contribuição de Sergio Ulhoa Dani, médico do Departamento de Oncologia Médica do Inselspital da Universidade de Berna, Suíça; Presidente da Fundação Acangau e do Instituto Medawar de Pesquisa Médica e Ambiental de Paracatu-MG, Brasil
Eu gostaria de agradecer o convite de participar desta Audiência Pública e dar meu depoimento sobre a intoxicação crônica da população de Paracatu pelo arsênio liberado pela mineração a céu aberto na cidade. Farei uma breve exposição do ponto de vista médico-legal da intoxicação e das consequências para a questão dos direitos humanos. Em razão de encontrar-me no exterior, faço minha contribuição por escrito.
O arsênio liberado pela mineradora RPM-Kinross das rochas da mina de ouro a céu aberto em Paracatu está na forma inorgânica. Muito antes do início da mineração em Paracatu, já se sabia, no Brasil e no mundo, que a forma inorgânica do arsênio é a mais tóxica. A intoxicação de seres humanos pelo arsênio liberado pela mineração de metais já era de conhecimento público em diversos países do mundo, inclusive o Reino Unido e o Canadá, países de origem da mineradora RPM-Kinross e seus investidores. Esses fatos importantes foram simplesmente omitidos dos relatórios de impacto ambiental (EIA-RIMA) apresentados pela mineradora para embasar o licenciamento de suas atividades no perímetro urbano de Paracatu. Então, não foi por falta do conhecimento científico que essa mineração e sua expansão foram autorizadas pelos órgãos ambientais federais, estaduais e municipais, e sim pela sua ocultação deliberada.
A mineradora transnacional canadense Kinross Gold Corporation constituiu uma rede de apoio incluindo empresários, políticos, órgãos e agências governamentais canadenses e brasileiras, mídia, juízes, polícia, Ministério Público Estadual e certas ONGs. Através dessa rede de apoio ela obteve, em pleno século 21, as permissões para operar uma mina de ouro e arsênio em um território urbano habitado por 90 mil pessoas, nas cabeceiras de uma das mais importantes bacias hidrográficas de um país de dimensões continentais como o Brasil. Pagamentos facilitadores, ganância fútil, ignorância útil e violência de toda sorte são os elementos corrompedores de que a Kinross Gold Corporation tem se valido para perpretar um verdadeiro e persistente genocídio em Paracatu e região.
Em 2007, fui procurado por um representante do Ministério Público Estadual de Minas Gerais em Paracatu, para preparar um relatório independente sobre o processo de expansão da mina de ouro de Paracatu, que já estava em andamento. Meu relatório foi o primeiro a trazer o problema do arsênio à tona. O relatório foi entregue ao Ministério Público Estadual, à FEAM-Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais, e também foi publicado em um jornal local de Paracatu. Minha recomendação foi pelo não licenciamento e pela indenização dos danos que já haviam sido causados pela mineração. Em seguida, entramos com um pedido administrativo junto à Prefeitura Municipal de Paracatu. Entretanto, nem o Ministério Público Estadual, nem a FEAM, nem a Prefeitura Municipal de Paracatu tomaram as providências cabíveis.
Em 2009, a Fundação Acangau propos uma Ação Civil Pública de precaução contra a Kinross e a Prefeitura Municipal de Paracatu, com pedido de liminar. Nesta ACP, indicamos os graves riscos da contaminação ambiental permanente e a intoxicação crônica da população de Paracatu e região pelo arsênio liberado pela mineradora. Pedimos, no bojo desta ACP, a realização de um estudo epidemiológico clínico-laboratorial da intoxicação crônica da população de Paracatu pelo arsênio liberado ao ambiente pela mineradora Kinross, e a paralisação imediata das atividades nocivas, bem como o tratamento da população atingida e a indenização dos danos causados.
Até hoje, nenhum desses pedidos foi satisfeito. Em vez disso, tentaram encerrar a ação, logo em 2009. Recorremos ao Tribunal em Belo Horizonte, que decidiu pelo prosseguimento da ação. Infelizmente, essa decisão teve pouco efeito, pois o Ministério Público de Minas Gerais posicionou-se contra o prosseguimento da ação, e o magistrado decidiu pela suspensão da mesma.
Em vista da negligência com que as autoridades municipais e estaduais tratam do assunto, sempre favorecendo a mineradora, em prejuízo ao ambiente e à saúde da população, levamos o caso de Paracatu para a esfera federal. Em março de 2010, conseguimos a inclusão de Paracatu no mapa oficial de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil, preparado pela Fiocruz-Fundação Oswaldo Cruz e pela FASE-Fundação de Atendimento Sócio-Educativo, com o apoio do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde. Paracatu foi incluída neste mapa por causa das graves consequências da extração de ouro a céu aberto na cidade: poluição ambiental grave e persistente, exposição crônica da população ao arsênio e outras substâncias tóxicas, destruição de nascentes de água potável e expulsão de comunidades tradicionais, entre outras injustiças.
Em 2011, o Conselho Nacional de Defesa da Pessoa Humana (CDDPH) admitiu a causa de envenenamento crônico da população de Paracatu pelo arsênio liberado pela mineração de ouro a céu aberto. Neste mesmo ano de 2011, um estudo financiado pela própria mineradora Kinross foi publicado em uma revista científica de circulação internacional, indicando que uma fração do arsênio que a mineradora libera em Paracatu está bioacessível. Isso significa que a mineradora tem conhecimento que o arsênio que ela libera para o ambiente em Paracatu e região é assimilável pelos seres vivos, inclusive o ser humano. Um estudo conduzido por uma equipe do Departamento de Química da UFMG-Universidade Federal de Minas Gerais e publicado, em meados de 2015, em uma revista científica de circulação internacional, comprovou que o arsênio inorgânico liberado em Paracatu já passou para a cadeia alimentar, consubstanciando os resultados do estudo financiado pela própria mineradora.
Os resultados desses e outros estudos estão reunidos e comentados na ACP movida pela Fundação Acangau. Em 2014, portanto cinco anos após o ingresso desta ACP, a mineradora Kinross e a Prefeitura de Paracatu apresentaram um relatório grotesco e nocivo sobre a situação epidemiológica da intoxicação crônica da população de Paracatu pelo arsênio liberado pela Kinross. Os problemas desse relatório, incluindo o fato de ter sido produzido pelo CETEM, um órgão do governo federal ligado à mineração e sem competência médica, a metodologia inadequada, a equipe desqualificada, o desconhecimento da literatura médica e científica, a falta de controles adequados, a falta de base confiável de dados, a análise de risco confusa e inconsistente, e as conclusões não suportadas pelos resultados foram denunciados pela nossa equipe, no bojo da ACP. Aparentemente, isso levou o Ministério Público e a Kinross a assinarem, neste ano de 2015, um aditamento a um acordo de 2011, em que as partes se comprometeram a “adotar todas as medidas necessárias para garantir a independência e a imparcialidade da equipe técnica” e o CETEM teria “assumido a obrigação de apresentar resultados válidos e que observem os procedimentos mais reconhecidos pela comunidade científica”. Nada deste acordo permite supor que os pedidos da ACP serão satisfeitos.
O que temos visto em Paracatu são pessoas com alta concentração de arsênio no corpo, conforme comprovado por exames laboratoriais que as próprias pessoas estão custeando, e estão sendo realizados em laboratórios credenciados no Brasil e no exterior. O quadro da intoxicação crônica de Paracatu é grave, e não se pode falar em nível de segurança. Simplesmente não existe dose segura para uma substância cancerígena como o arsênio, e quanto maior a concentração de arsênio no corpo, maior é o risco de desenvolver câncer e um catálogo de outras doenças.
Essas conclusões estão bem fundamentadas pela evidência médica e científica, e estão bem documentadas na Ação Civil Pública movida pela Fundação Acangau contra a Kinross e a Prefeitura Municipal de Paracatu. A Kinross e certas autoridades que a apóiam desrespeitam os direitos humanos, incluindo o direito à vida, à saúde e ao ambiente ecologicamente equilibrado em Paracatu. A intoxicação crônica da população de Paracatu é um caso de genocídio culposo. Esse tipo de genocídio pode não gerar um processo criminal, mas certamente gera a obrigação de indenizar.
O empreendimento mortífero da Kinross em Paracatu tem alcance internacional, seja porque financiado e apoiado pelo governo canadense, seja porque instrumentalizado por empresas transnacionais como Caterpillar/Bucyrus, Siemens, DuPont, seja porque uma fração das centenas de milhares de toneladas de arsênio liberadas da rocha dura pela mineração da Kinross em Paracatu espalha-se pelo mundo através do ar, da água e da cadeia alimentar, atualmente e durante os próximos séculos, causando desequilíbrios ambientais, pobreza, doenças e sofrimento humano.
Diante dos gigantescos danos ambientais e à saúde, torna-se fundamental exigir da mineradora e seus investidores, apoiadores e gestores, públicos e privados, mediante ações nas esferas pública e privada, caução, reparação e indenização comensuráveis. A contaminação ambiental persistente implica em milhares de vítimas, de várias gerações, ao longo de décadas ou séculos. O esforço de diagnosticar a intoxicação crônica dessas milhares de pessoas, fazer seu acompanhamento e tratamento, bem como indenizá-las adequadamente e constituir as fontes de renda perdidas é gigantesco. A colaboração internacional de médicos, cientistas e advogados, com apoio institucional, é uma estratégia para romper os monopólios e a corrupção que tendem a perpetuar o genocídio culposo de Paracatu. A pesquisa científica, médica, ambiental e tecnológica, em colaboração internacional tem se mostrado fundamental para esclarecer e solucionar os problemas advindos da mineração de ouro a céu aberto em Paracatu.