No
Brasil cresce a resistência contra a exploração mineral nociva ao ambiente e às
pessoas. Uma visita a uma das maiores minas de ouro da América Latina. POR THOMAS FISCHERMANN
O
garimpeiro José Joaquim Teixeira sabe: O ouro de Paracatu vem misturado com muito
arsênio. | © Photo Agency Giorgio Palmera / Eco
A
mina de ouro está localizada junto à pequena cidade de Paracatu, e se expande. A operadora da mina, Kinross Gold Korporation libera o ouro da rocha com explosões, um moinho de minério e
processos químicos. | © Photo Agency Giorgio Palmera / Eco
A
partir do telhado de zinco da casa simples que pertence ao José Joaquim
Teixeira tem-se uma excelente vista da
explosão. Em cada dia de trabalho na gigantesca cava da mina, por volta das 16 horas um tesouro é arrancado da terra. A dinamite explode toneladas de
rocha e faz tilintar taças de vidro a quilômetros de distância, e logo depois
uma nuvem cinzenta paira sobre o vale. O sol atinge as partículas de
poeira e as tinge de um amarelo sujo, até que o vento as apanha e as sopra sobre
as colinas, sobre a casa do José Teixeira e sua cidade natal de Paracatu.
Paracatu,
80.000 habitantes, localizada a três horas de viagem de carro à sudeste da
capital do Brasil, Brasília, foi construída sobre uma pepita de ouro. Em 1722, o
povoado viveu sua primeira corrida do ouro, e até há poucas décadas seus
moradores, após as chuvas fortes, ainda punham-se a procurar, na lama e no
cascalho deixado pelas enxurradas, pelos caminhos, pedrinhas e pozinhos
brilhantes que prometiam um pouco de prosperidade.
Entrementes,
o asfalto cobriu as vias e os caminhos de Paracatu, uma empresa de mineração comprou
a terra da região, e há dez anos José Texeira não é mais o que costumava ser: um garimpeiro profissional. Por décadas, esse
homem negro parrudo enfurnava-se com sua bateia pelos córregos e riachos, e mesmo
quando a operadora da mina veio com escavadeiras e explosivos, ele ainda se
punha a trabalhar nos efluentes e rejeitos da mineração mecanizada. Até que, em 2004, um
novo e mais agressivo proprietário da mina, a empresa mineradora canadense Kinross
expulsou os últimos garimpeiros com cães e armas. O ouro, como consta do seu
contrato com o governo, pertence somente à Kinross.
José
Teixeira sabe até hoje tudo sobre o ouro desta área - e ele também conhece o
seu lado sombrio. "Onde está o ouro? Aqui por toda a parte!", diz ele ,
apontando para o chão, e apanha um pedaço de rocha. É um pedaço de rocha cinza
com veios finos, eles são amarelos, marrons e esverdeados, uma mistura
perigosa. O ouro de Paracatu vem colado ao arsênio, um veneno inodoro, do qual
pequenas quantidades bastam para matar um ser humano, e que lentamente se
acumula nas vias aéreas e nos ossos, e faz crescer tumores cancerígenos, danifica
os nascituros e desencadeia todo um catálogo de queixas crônicas.
O arsênio
acompanha o ouro em quase todos os lugares, mas na área de Paracatu a proporção
é particularmente desfavorável. Em quatro quilos de rocha encontra-se aqui apenas
0,4 grama de ouro, mas 300 gramas de arsênio (1). Sob Paracatu jaz um tesouro –
mas também veneno suficiente para erradicar teoricamente mil vezes toda a
humanidade.
Então
o que acontece se a cada dia explode arsênio em uma mina a céu aberto que está
localizada no meio de uma pequena cidade? Se a poeira é lançada ao ar ? Se o
ouro é extraído através de moagem – aliás num moinho fornecido pela Siemens – e
processos químicos que dissolvem o ouro, e os efluentes tóxicos são bombeados
para lagoas de infiltração ?
Durante
as últimas décadas, essas questões eram secundárias no Brasil. O boom das
commodities tinha prioridade. O Brasil queria sair da condição de país
emergente para tornar-se um poderio industrial e mundial, e para isso a riqueza
tinha que sair do chão. As matérias-primas que respondem por quase um quarto
de todas as exportações brasileiras precisavam ser enviadas para a China, os
EUA e a Europa, e elas também tinham que alimentar o rápido crescimento da indústria
doméstica. Questões de saúde pública ou de proteção ambiental eram algo para
belos discursos dominicais e para leis que ninguém levava a sério.
Mas
quando o grupo canadense Kinross assumiu a mina de Paracatu em 2003, e em
poucos anos triplicou a exploração de ouro usando novas técnicas de “supermineração”,
ele trombou suas escavações e explosões contra algo totalmente novo: uma
resistência feroz.
Notas
do tradutor:
(1)
O ouro na mina a céu aberto de Paracatu ocorre juntamente com a arsenopirita,
um mineral sulfetado de arsênio de fórmula química FeAsS. Segundo relatórios oficiais
da própria mineradora Kinross Gold Corporation, a quantidade de arsênio presente
no minério de ouro de Paracatu é muito alta.
Na folha 317 da Ação Civil Pública (ACP) movida a partir de 2009 pela Fundação
Acangau contra a Kinross, a mineradora informa que o arsênio “está presente em
1,5% do minério de ouro, em média”. Um e meio por cento significa 1,5 kg de
arsênio para cada 100 kg de minério, equivalente a 15 partes de arsênio por mil
partes de minério, ou 15 kg de arsênio por tonelada de minério. Essa
concentração é quinze vezes maior que a anunciada pela própria ré em outros relatórios
técnicos (Henderson RD. 2006. Paracatu Mine Technical Report. Kinross Gold
Corporation, July 31, 2006. Disponível na internet em: http://www.kinross.com/operations/pdf/Technical-Report-Paracatu.pdf; relatório da ré reproduzido na folha 1344 da
citada ACP indica concentração de arsênio de 1000-1500 ppm). Considerando a
quantidade total de minério de ouro com arsênio a ser processado pela ré a
partir do chamado “projeto de expansão III” iniciado em 2007, cerca de um
bilhão de toneladas, chega-se à quantidade total de arsênio, multiplicando-se
1,5% por um bilhão: 15 milhões de toneladas (em vez de 1 milhão de toneladas,
conforme depreendido do relatório de Henderson, 2006, citado acima). A Kinross informa
que “apenas uma ínfima quantidade residual de cerca de 1%” do arsênio liberado
da rocha é lançado na lagoa de rejeitos, sendo o restante depositado em tanques
específicos (fl. 318 da ACP). Essa quantidade “ínfima” seria então equivalente
a 150 mil toneladas (1% x 15 milhões de toneladas = 150 mil toneladas), embora
a Kinross informe, na folha 318 da ACP, que trata-se, na verdade, de 463.640
toneladas de arsênio, portanto uma quantidade 3x maior. A Kinross informa, na nota de rodapé da folha
318 da ACP, que desse valor total, “apenas 1,8 toneladas estão diluídas na
água; o restante permanece estável nos rejeitos, da mesma forma como estavam na
mina”. Essa quantidade “ínfima” de arsênio dissolvido na água já seria
suficiente para matar, em questão de horas ou dias, 10 milhões de pessoas, e
para intoxicar, cronicamente, um número muito maior de pessoas em questão de
anos ou décadas de exposição (para matar um ser humano adulto em questão de
horas ou dias, bastam cerca de 140
a 180 miligramas de arsênio inorgânico. Quantidades
muito menores – da ordem de milionésimos do grama – se ingeridas ou aspiradas
ao longo de meses ou anos, podem causar uma série de doenças incluindo câncer,
doenças vasculares, diabetes, doenças neurológicas, imunodeficiência, etc.). Esses
números já são assustadores, mas representam um valor subestimado. Um estudo
publicado pela Kinross, em colaboração com o CETEM-Centro de Tecnologia Mineral
informa que apenas 30% do arsênio é recuperado pelo processo de hidrometalurgia
utilizado pela Kinross (Monte MBM, Lins FF, Dutra AJB, Albuquerque CRF, Tondo
LA. The influence of the oxidation state of pyrite and
arsenopyrite on the flotation of an auriferous sulphide ore. CT2002-195-00
Comunicação técnica elaborada para o periódico Minerals Engineering. CETEM-Centro
de Tecnologia Mineral, MCT-Ministério da Ciência e Tecnologia, Coordenação de
Inovação Técnológica - CTEC, Rio de Janeiro, Dezembro/2002. O Sr. Luis Albano
Tondo, funcionário da RPM-Kinross há muitos anos, é co-autor desse artigo).
Esse estudo indica que o processo de hidrometalurgia utilizado pela mineradora
em Paracatu não é capaz de recuperar todo o arsênio tóxico que ela libera do
minério arsenopirita. O concentrado gravitado de ouro possui uma composição
média de 58,3 gramas de ouro por tonelada, 15,2% de ferro (Fe), 21,9% de enxofre
(S) e 11% de arsênio (As), sempre conforme o estudo publicado pela Kinross em
conjunto com o CETEM. Enquanto a recuperação média de ouro no circuito da
hidrometalurgia varia de 40% a 80%, a recuperação máxima do arsênio é de apenas
30%, informa o estudo já citado. Isso quer dizer que 70% ou mais do arsênio –
equivalente a 105 milhões de toneladas – não são recuperados, segundo o estudo.
A baixa taxa de flotabilidade da arsenopirita pode ser atribuída à formação de
espécies de óxidos de ferro sobre a superfície do sulfeto ou arsenopirita. A
reação do oxigênio com a superfície da arsenopirita é rápida e muito
facilitada, e produz espécies altamente tóxicas de óxidos de arsênio,
certamente as espécies que a Kinross chama de “arsênio perigoso” (fl. 318 da
ACP). O uso de nitrogênio no lugar do oxigênio na função de gás para flotação
pode aumentar a recuperação do arsênio, porém a própria Kinross reconhece e
afirma e sabe que a recuperação do arsênio não é completa. Isso significa que o
arsênio originalmente presente na arsenopirita, incluindo compostos mais
tóxicos que a própria arsenopirita, é deliberadamente descartado junto com os
rejeitos, tanto nos tanques específicos quanto na lagoa de rejeitos. Prova
disso é que a Kinross afirma que parte do arsênio descartado fica dissolvido na
água – cerca de 1,8 toneladas (nota de rodapé da folha 318 da ACP). As
quantidades de arsênio liberado admitidas pela Kinross e estimadas a partir dos
dados e estudos fornecidos pela própria Kinross é assustadora e constituem
evidência de poluição grave e persistente. A afirmação da Kinross de que parte
do arsênio liberado da rocha e descartado na lagoa de rejeitos “permanece
estável nos rejeitos, da mesma forma como estavam na mina” (nota de rodapé da
folha 318 da ACP) é falaciosa. Na mina, o arsênio encontrava-se solidamente
cimentado em rochas duras que datam do período proterozóico, enquanto que nos
rejeitos o arsênio encontra-se finamente moído e disperso em uma bacia
sedimentar terciária artificial aplainada, sob efeito da drenagem ácida. Em
outras palavras, a Kinross está liberando da rocha um veneno que levou bilhões
de anos para ser cimentado pela natureza numa época da história natural da
Terra em que só existiam formas primitivas de organismos, como proto-bactérias
que conseguiam sobreviver em meio ao arsênio. A Kinross quer que os “rejeitos
permaneçam estáveis, da mesma forma como estavam na mina”. Quanta pretensão,
igualar um processo que durou entre centenas de milhões de anos a bilhões de
anos, e um processo que dura poucos dias, meses, décadas ou anos! Na ACP, a Kinross
evita discorrer sobre a liberação de arsênio na poeira fugitiva da mina. Em seu
“Relatório de Desenvolvimento Sustentável” de 2003, a ré mostrava que a
quantidade de arsênio na "poeira fugitiva" da sua mina de ouro a céu
aberto em Paracatu aumentou de 3,42 kg em 2001, para 5,79 kg em 2002, e para
6,10 kg em 2003 (Rio Paracatu Mineração SA. Relatório de Desenvolvimento
Sustentável de 2003, página 14). Esse relatório não deixa dúvida nem sobre a
fonte nem sobre a autoria desta poluição. Inexplicavelmente, a Kinross evita
informar a quantidade de arsênio que ela está liberando anualmente na forma de
poeira. Na fase atual do empreendimento chamada “projeto de expansão III”,
iniciado em 2007, a Kinross processará cerca de 1 bilhão de toneladas de
minério, volume que é cerca de três vezes maior que o volume de minério
processado antes da expansão. Fazendo-se uma regra de três simples a partir do
último dado disponível de 2003, pode-se estimar uma liberação anual de cerca de
18 kg de arsênio para a atmosfera, na forma de material particulado (poeira).
Como não existe diferença entre as vias de absorção no que diz respeito à
toxicidade do arsênio (Smith AH,
Ercumen A, Yuan Y, Steinmaus CM. 2009. Increased lung cancer risks are similar whether arsenic is ingested or
inhaled. Journal
of Exposure Science and Environmental Epidemiology 19, 343–348), pode-se
afirmar que apenas essa quantidade de arsênio que é liberada na forma de poeira
é suficiente para intoxicar 100 mil pessoas, equivalente a toda a população de
Paracatu.
Continue lendo a reportagem:
http://www.alertaparacatu.blogspot.com/2014/04/o-tesouro-venenoso-de-paracatu-parte-ii.html
http://www.alertaparacatu.blogspot.com/2014/04/o-tesouro-venenoso-de-paracatu-parte-iii.html
http://www.alertaparacatu.blogspot.com/2014/05/o-tesouro-venonoso-de-paracatu-parte-iv.html
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http://www.alertaparacatu.blogspot.com/2014/04/o-tesouro-venenoso-de-paracatu-parte-ii.html
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