segunda-feira, 22 de março de 2010

A salvação de Paracatu

A salvação de Paracatu


Sergio U. Dani, de Göttingen, Alemanha, em 21 de março de 2010.


Não faltam médicos, nem estabelecimentos de saúde, nem farmácias em Paracatu [1], mas a saúde da população vai muito mal. Dengue, lepra, leishmaniose, esquistossomose, câncer, diabetes, hipertensão, derrame, doença renal, alcoolismo, toxicomania, violência, homicídio, doença mental, aborto e malformações congênitas estão na boca do povo.


As falhas de registro da ocorrência dessas doenças não conseguem ocultar que a cidade de Paracatu tornou-se área hiperendêmica de lepra, dengue e leishmaniose, foco de esquistossomose, e que o índice de morbidade geral de Paracatu é maior que os do Estado de Minas Gerais e do Brasil [2-4].
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Este mês o município de Paracatu foi incluído no mapa oficial dos conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil [5]. No centro deste mapa está a mina de ouro a céu aberto da cidade, explorada pela mineradora transnacional canadense RPM/Kinross.

A mineradora expulsa as pessoas e as comunidades de suas terras e casas, produz uma legião de desocupados e concentra a renda e o poder nas mãos de poucos, cava crateras, destrói nascentes, rouba água, polui córregos, produz poeira e lama tóxicas, envenena a população, cria desequilíbrios e instabilidades ambientais e sociais e corrompe a sociedade com pagamentos facilitadores.

A mina de ouro de Paracatu é a maior do Brasil, está localizada no perímetro urbano e tem os menores teores de ouro do mundo. A rocha é dura e contém arsênio, um veneno sem cheiro e sem gosto que o vento e a água espalham. Os custos sócio-ambientais da exploração são elevados, o lucro do ouro é exportado e os prejuízos ficam em Paracatu.

Desequilíbrios sócio-ambientais geram desocupação, pobreza, concentração de renda e doenças. Em 2000, apenas 37% da população de Paracatu possuíam uma ocupação [6]. Enquanto os desequilíbrios sócio-ambientais não forem corrigidos, o município de Paracatu não conseguirá conciliar baixo nível de pobreza com alta taxa de ocupação e baixa concentração de renda [7].

Programas de geração de emprego e renda ou assistência social não funcionam, se os desequilíbrios sócio-ambientais não forem corrigidos. É como se alguém tentasse se salvar da queda, puxando os próprios cabelos.

Também não adianta investir na educação ou na saúde como querem os políticos de visão miúda, inaugurando novos institutos e faculdades ou hospitais e clínicas, sem antes corrigir os desequilíbrios sócio-ambientais. É como tentar resolver a pobreza e a falta de dinheiro criando mais bancos. Já vimos que não faltam médicos nem clínicas em Paracatu, mas a saúde vai mal. Medicina não é saúde. Também não faltam professores nem escolas nem faculdades em Paracatu [8], mas o povo continua pobre, doente e subdesenvolvido [9]. É preciso toda uma comunidade para educar uma criança [10].

A saúde e a vida em Paracatu só poderão melhorar se a mineradora for obrigada a pagar pelos estragos sócio-ambientais que causou e for impedida de causar mais estragos.

A primeira providência é evitar a destruição do Vale do Machadinho pelo erguimento de mais uma barragem de rejeitos tóxicos da mineradora. A água do Vale do Machadinho não pode ser poluída porque ela é a chave para a recuperação da cidade de Paracatu. Ela é água potável, que chega ao centro da cidade por queda natural, sem gasto de energia.

O projeto atual de revitalização do Córrego Rico deve ser profundamente alterado e expandido, para que atinja os objetivos e necessidades da população de Paracatu, e não simplesmente as necessidades da mineradora. A mineradora destruiu as nascentes do Córrego Rico, que é a artéria de Paracatu, onde a vida da cidade começou. Para voltar à vida equilibrada, o Córrego Rico precisa da água do Vale do Machadinho e da água de todos os seus afluentes urbanos, que também devem ser recuperados pela mineradora.

Extensas áreas margeando todas as nascentes, córregos e seus afluentes urbanos devem ser desurbanizadas e recuperadas para restabelecer um convívio ecologicamente equilibrado entre fatores bióticos e abióticos. Extensas áreas verdes devem ser criadas e protegidas dentro e em torno do assentamento urbano, de modo a aumentar a capacidade de recarga do lençol freático, reduzir a temperatura ambiente média e melhorar a qualidade das águas e do ar.

As áreas da lavra e da lagoa de rejeitos atual devem ser adequadamente drenadas e revegetadas com uma floresta mista para produção sustentável de biochar, e transformadas em reserva florestal de manejo sustentável protegida por lei, para evitar outro tipo de ocupação ou exploração futura. A água dos drenos deve ser filtrada, da mesma forma que a Kinross foi obrigada a fazer na mina de Buckhorn, nos Estados Unidos. O material contido nos tanques específicos deve ser enterrado no fundo da cava e coberto com pelo menos 10 metros de altura de terra ou biochar. A mineradora será obrigada a instalar e manter uma estrutura permanente de produção e enterramento de biochar no local, que poderá ser mantida com recursos provenientes de créditos de carbono.

Todas as comunidades desmanteladas, desestruturadas ou impactadas pela mineradora devem ser reassentadas ou revitalizadas em seus locais de origem, com pagamento de compensações na forma de infra-estrutura residencial e de produção, etc.

Além dessas medidas, a mineradora deverá ser obrigada a cumprir uma série de outras medidas de caráter indenizatório dos danos à saúde e meio ambiente, conforme já expusemos nos relatórios publicados no www.alertaparacatu.blogspot.com.

Os gestores públicos são co-responsáveis pelos danos, como no caso da Prefeitura que já foi provocada oficialmente para executar o levantamento epidemiológico do envenenamento crônico por arsênio e nada publicou sobre os resultados. O Estado-administrador só agrava sua culpa quando tenta justificar a omissão com a impotência instrumental ou a ignorância [11].

Referências e notas:

[1] Número de médicos em Paracatu: 74 (cerca de 1 médico para cada mil habitantes). Consulta feita em 21 de março de 2010 no site: http://www.crmmg.org.br/interna.php?n1=12&n2=24&pagina=205 .
Número de estabelecimentos de saúde em Paracatu: 19 municipais e 10 privados (cerca de um estabelecimento para cada 2700 habitantes). Consulta feita em 21 de março de 2010 no site: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=314700#topo.
Número de farmácias em Paracatu: 23 (cerca de 1 farmácia para cada 3600 habitantes). Consulta feita em 21 de março de 2010 no site: http://www.paracatuonline.com.br/noticias/farmacias.htm.

[2] Ferreira IN, 2008. Busca ativa de hanseníase na população escolar e distribuição espacial da endemia no município de Paracatu. – MG (2004 a 2006). Tese de doutorado, Universidade de Brasília – UnB, Faculdade de Ciências da Saúde. Resumo publicado por Ferreira IN, Evangelista MSN e Alvarez RRA, na Revista Brasileira de Epidemiologia, vol.10 no. 4 São Paulo Dec. 2007, acessível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1415-790X2007000400014&script=sci_arttext.

[3] As falhas de registro de dengue em Paracatu são notórias. Enquanto as Secretarias Municipal e Estadual informam 803 casos notificados e confirmados na atual epidemia de dengue (http://gaia.saude.mg.gov.br/blog/2010/03/informe-epidemiologico-n%C2%BA-1/), estima-se a ocorrência de centenas a milhares de casos de doentes atendidos no mesmo período no Hospital Municipal de Paracatu e que são sumariamente examinados, recebem uma injeção intramuscular, um punhado de comprimidos de paracetamol e voltam para casa. Os que ficam no hospital e entram para as estatísticas oficiais de casos notificados e confirmados são principalmente os doentes mais combalidos, que muitas vezes chegam de maca, com risco de morte.

[4] Consulta feita em 21 de março de 2010 no site: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=314700#topo

[5] Paracatu está no mapa oficial da injustiça ambiental disponível na internet no endereço http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php. Este mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil é resultado de um projeto desenvolvido em conjunto pela Fiocruz-Fundação Oswaldo Cruz e pela FASE-Fundação de Atendimento Sócio-Educativo, com o apoio do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde.

[6] Enríquez, MARS. Maldição ou dádiva? Os dilemas do desenvolvimento sustentável a partir de uma base mineira. Tese de Doutorado, Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. 2007, 449 páginas.

[7] No período de 1991 a 2000, Paracatu conseguiu reduzir a pobreza, medida em termos da redução do percentual de pessoas com renda abaixo de R$75,50 (47,43% da população era considerada “pobre” em 1991; 37,42% era considerada “pobre” em 2000). Entretanto, nesse nível de pobreza, que mais adequadamente descreve “miséria”, essa redução pode ser atribuída aos programas de assistência social do governo federal.

[8] Número de escolas em Paracatu: pré-escola, 28; ensino fundamental, 39; ensino médio, 10. Número de docentes em Paracatu: 135 na pré-escola, 808 no ensino fundamental e 270 no ensino médio. Consulta feita em 21 de março de 2010, no site http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=314700#topo.

[9] Em 2000, Paracatu ocupava a 205ª posição no ranking de IDHM-Índice de Desenvolvimento Humano Municipal entre todos os municípios do Estado de Minas Gerais. Em 2007, o Brasil ocupava a 75ª posição no ranking de países segundo o IDH-Índice de Desenvolvimento Humano (http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_Human_Development_Index).

[10] Antigo provérbio africano.

[11] "Os requisitos configuradores da responsabilidade civil do Estado são: ocorrência do dano; nexo causal entre o eventus damni e a ação ou omissão do agente público ou do prestador de serviço público; a oficialidade da conduta lesiva; inexistência de causa excludente da responsabilidade civil do Estado. " (Morais p. 341-342, 2001). MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional . 10 ed. São Paulo: Atlas, 2001. Citado por Danielle Christine Barros Nogueira em A responsabilidade civil extracontratual do estado em decorrência de seus atos omissivos:
http://www.jusbrasil.com.br/noticias/404101/a-responsabilidade-civil-extracontratual-do-estado-em-decorrencia-de-seus-atos-omissivos-danielle-christine-barros-nogueira
acessado em 21 de março de 2010.

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