O ESTADO BUROCRÁTICO DE DIREITO
CASO: em Paracatu-MG, a Fundação Acangaú, constituída para a defesa dos ecossistemas, teve indeferida liminarmente a Ação Civil Pública de Precaução e Prevenção visando o monitoramento ambiental da instalação da barragem da mineradora RPM/KINROSS que abrigará um bilhão de toneladas de material contendo arsênio na proporção de um quilograma por tonelada de rejeitos. O argumento do magistrado foi a ilegitimidade ativa, dado que a fundação não estaria constituída nos termos do Código Civil (LEI No 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002.):
Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la.
Parágrafo único. A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência.
Data pauta: 11/09/2009
AUTOR: FUNDAÇÃO ACANGAÚ PARA CONSERVAÇÃO E USO DOS ECOSSISTEMAS; RÉU: RPM RIO PARACATU MINERAÇÃO S/A e outros => Dispositivo da r. sentença de f 241/245: "... Diante do exposto, JULGO EXTINTO o processo, sem resolução de mérito, por ilegitimidade ativa, com fulcro no artigo 267, VI, do CPC. Processo isento de custas, nos termos do artigo 18 da Lei 7.347/1985, uma vez não vislumbrado, neste momento, má-fé da autora..." Adv - HEITOR CAMPOS BOTELHO.
A fundação recorreu da decisão visto que constituída na forma da lei anterior não teve o seu estado jurídico afetado, pois a lei nova regula a constituição de novas fundações, e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais anulou a decisão e considerou a fundação legítima para a proposição, comandando o retorno à Comarca de Paracatu para prosseguimento e julgamento.
CENÁRIO: a área de mineração em rocha arsenopirita é limítrofe da zona urbana. A população está exposta à poeira fugitiva da mina (http://alertapracatu.blogspot.com) existindo o perigo concreto de envenenamento crônico por arsênio devido à bioacumulação no organismo, mais os riscos de contaminação ambiental difusa.
CONFLITO: as autoridades locais e a população defendem a importância econômica (empregos e impostos) da mineradora, no que acompanham a tendência dos governos estadual e federal (formação do PIB e balança comercial). A Fundação Acangaú lidera o grupo de referência que se opõe aos danos ambientais e os danos à saúde ambiental.
PROPOSIÇÃO: Constituição da República do Brasil - Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
ALCANCE DA PROPOSIÇÃO
O Art. 225, ao definir o meio ambiente ecologicamente equilibrado como essencial à sadia qualidade de vida, assume a função de corolário do Art. 5º que estabelece inviolabilidade do direito à vida individual e coletiva como direito e garantia, reforçado pela disposição do Art. 6º que arrola o direito à saúde como direito social, e mais o Art. 196 que estabelece, sob título específico, que a saúde é direito de todos e dever do Estado.
O Estado é o responsável pela efetivação da "vontade da Constituição" e para tal atua pelas vias legislativas, executivas e judiciárias.
No exercício imediato da função administradora cumpre aos governos, como dever estabelecido na Constituição, ações de defesa e preservação ambiental que, em tese, independem de provocação daquele ou daqueles que estão sujeitos ao perigo ou dano.
A provocação do interessado individual ou coletivo é sugerida como exercício da cidadania, complementar do dever de fiscalização do Estado-administrador, à vista da impossível onipresença territorial. A provocação opera como um chamamento do Estado ao cumprimento do dever e, face de o cidadão não dispor de meios diretos de defesa do direito material.
A proposição pode ser definida como sendo de DIREITO MATERIAL COLETIVO visto que enfrenta a relação entre duas entidades de natureza material: a vida e o meio ambiente. (1)
(1) Konrad Hesse destacou que a função diretriz da Constituição consiste, sobretudo, em dotar os direitos fundamentais de força vinculante para todo o ordenamento jurídico. Com isto a Constituição contribui profundamente para a garantia de um ordenamento jurídico moralmente reto.
Citado por Gregório Assagra de Almeida in DIREITO MATERIAL COLETIVO, DelRey, Belo Horizonte, 2008, pág. 335/336
Gregório Assagra de Almeira (ob. cit. pág. 318) citando José Afonso da Silva, anota: "f) direitos fundamentais do homem solidário ou do gênero humano, representados pelo direito à paz, ao desenvolvimento, à comunicação, ao ambiente, ao patrimônio comum da humanidade (arts. 3º, 4º e 225)"
Com apoio na anotação o cenário de risco de envenenamento crônico por arsênio vem sendo tratado como tentativa de genocídio, somadas as ações e omissões que concorrem para tal.
DEFESA DA PROPOSIÇÃO
Como suporte ao dever cidadão de defesa e preservação do meio ambiente o Estado garante o direito de ação, direito ao qual impõe limites para a causa e para o processo.
A regulação da legitimidade para a causa e processo é necessária para a ordem pública, mas o caráter limitante da regulação pode ser discutido quando da indisponibilidade ou inércia de postulantes legitimados em face de lesão ou ameaça ao disposto no art. 225, visto que as ameaças ou danos no âmbito do citado artigo são de ordem material e atingem direitos fundamentais. (2)
(2) XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Seria fácil resolver a limitação com a adoção da "class action", mas tal proposição foi vetada pelo Ministério da Justiça com a "pavorosa" justificativa de que "o país ainda não está preparado para um instrumento desse tipo, que provocaria uma enxurrada de ações de indenização milionárias, criando problemas para a Justiça e ameaçando grandes empresas." (http://www.jusbrasil.com.br/noticias/723670/ministerio-veta-criacao-da-class-action-no-brasil acessado em 14.11.09 09.45).
A justificativa atende à impotência do governo judiciário e protege as grandes empresas, afastando-se da vontade da Constituição, além de contemplar como favorável ao governo o pouco uso da ação popular na sua modalidade ambiental, pouco uso que revela o baixo índice de cidadania que parece agradável aos governantes.
Desta sorte, é dispensado debater por uma nova modalidade de ação e buscar na instrumentalidade vigente a viabilização da defesa destes direitos materiais fundamentais quando reclamada mesmo por um único cidadão que demonstre pertencer ao universo da ameaça ou do dano de extensão difusa e coletiva.
Em sendo o fundamento da reclamação um direito material coletivo - consagrado na Constituição - o reclamante é parte legítima ad causam por pertencimento ao universo da ameaça ou do dano, e sua invocação de proteção, conquanto mal dirigida ao Poder Judiciário em ausência de legitimidade ad processum, não pode ser afastada de plano por impropriedade em face de ser o Poder Judiciário um poder de governo do Estado vinculado ao dever de defesa e proteção (arts. 196 e 225, CF).
Não está em discussão alguma forma de jurisdição de ofício nem a hipótese de o judiciário agir de forma subsidiária ao cidadão. Está, sim, em discussão, a instrumentalidade do Estado-administrador versus regime democrático.
A Constituição destaca que o Brasil é constituído na forma de REPÚBLICA (art. 1º) e governado no sistema PRESIDENCIALISTA, sendo o regime de governo a DEMOCRACIA (art. 127, CF - regime democrático), constituindo o ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.
A democracia é entendida como sendo o governo da maioria do povo, maioria essa que estabelece o poder e o exercita nas formas constitucionalizadas. As formas de participação direta do povo no exercício do poder são menos abundantes do que as formas de governo coletivo, e a principal função do governo coletivo é fazer com que a vontade da Constituição (e das leis com ela acordes) seja materializada, função que pode ser resumida como "vontade de Constituição". (3)
(3) "Povo não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere ao legislador democrático o processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional: como partido político, como opinião científica, como grupo de interesse, como cidadão." (Peter Haberle, HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL, trad. de Gilmar Ferreira Mendes, SAF Editor, 2002, pág. 37)
O governo num ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO não pode afastar-se do princípio da razoabilidade, e é a própria Constituição que ao dar curso as expressões majoritárias estabelece mecanismos de proteção às expressões minoritárias, e é deste "jogo de forças" que transforma as realidades que surge o REGIME DEMOCRÁTICO como exercício do poder com a menor gravosidade para o povo (entendido aqui em toda a extensão do destaque, ou seja, da vontade político-partidária até o cidadão).
O princípio da menor gravosidade, ou da menor onerosidade, é um velho conhecido no processo de execução forçada e é aplicado no sentido de garantir a efetividade da execução e a "sobrevivência" do executado, como consagrado na doutrina.
Agora constitucionalmente vinculado à dignidade da pessoa humana, o princípio da menor gravosidade assume a força de direito subjetivo do cidadão e suas expressões coletivas, e ai estão as leis que atendem os portadores de necessidades especiais como exemplo de "menor gravosidade", impondo que edificações coletivas que atendem a maioria sejam adaptadas para o acesso das minorias.
É assim que se delineia uma nova ótica para o exercício do poder de governo: encontrar a melhor relação custo/benefício, vez que esta será atende as duas partes: menor custo para o governo e maior benefício para o governado. Trata-se, evidentemente, de um exercício de vigência consistente na pretensão de ver a norma concretizada na realidade ou, como já dito, a vontade DE Constituição. (4)
(4) "Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-a em força ativa se fizerem-se presentes na consciência geral - particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional - não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)." (Konrad Hesse, A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO, trad. de Gilmar Ferreira Mendes, SAF, 1991, pág. 19)
DA LEGTIMIDADE ATIVA NAS AÇÕES DE DEFESA DE INTERESSE DA COLETIVIDADE
O rol dos legitimados ativos para a ação civil pública, elaborado em razão da legitimação da representação do interesse da coletividade, não atende ao sentido constitucional de proteção de direito fundamental em toda a extensão (TODOS OS BRASILEIROS).
É fácil verficar que os legitimados pela lei estão situados em espaços distintos na plataforma social, não sendo possível afirmar que o cidadão que sofre o dano tenha iniciativa diante das pressões a que está submetido nem que o membro do Ministério Público consiga alcançar o significado do sofrimento do danado.
A excursão por todo o espectro dos legitimados na lei ordinária conquanto, em tese, alcance todos os cidadãos, não possui eficácia instrumental que garanta eficácia na realidade, e muitas são as razões para tal.
Se o direito invocado é de natureza fundamental, cumprindo ao Estado a implementação das condições de fato para o exercício, e proibido o Estado de cassá-lo ou reduzir o gôzo, direta ou indiretamente, a legitimidade "ad causam", patente pela natureza fundamental do direito, não pode sofrer limitações "ad processum", dado que a invocação de direito fundamental goza da presunção de boa fé, sem qual presunção estaria sendo limitada a própria cidadania.
Assim, a invocação de direito fundamental é tão alargada pelo &2º do art. 5º da Constituição que o princípio da verossimilhança atrai para o âmbito da postulação perante o judiciário brasileiro qualquer direito de igual hierarquia com sede em direito de país cuja Carta Magna adote os mesmos princípios que os pátrios. Portugal, Argentina e Estados Unidos são exemplos de nações que acatam a legitimidade ativa individual para defesa de interesse coletivo, como regra.
Basta um único exemplo de direito e correspondente ação de defesa para ser tido como firme que o propósito é o de dar o máximo de alcance ao exercício do direito fundamental pela via de defesa do mesmo, ou seja, TODOS SÃO LEGITIMADOS SIMPLESMENTE POR SEREM CIDADÃOS.
A limitação brasileira privilegia a formalidade em detrimento da essencialidade.
Longe deste texto qualquer alusão ao entendimento do magistrado que indeferiu de plano a postulação de prevenção e precaução formulada pela Fundação Acangaú.
Dentro do texto, com certeza, o cumprimento do mandato constitucional de defesa do regime democrático e é neste enfoque estrito a sustentação sobre a impossibilidade constitucional de indeferimento de ação de postulação de direito fundamental por ilegitimidade ativa, sem o exame dos fundamentos de fato.
Os fundamentos de fato, no caso em estudo, começam por serem públicos e notórios a olho descalço, passam pela divulgação de informações que caracterizam o "fumus bonis iuris", podem ser conferidos pelo princípio da verossimilhança com diversos cenários no mundo e alcançam mesmo que a própria legitimada passiva mostra em seus relatórios o risco potencial para a saúde e para a vida dos expostos.
A ação proposta é de precaução e prevenção, qual seja, não implica em sucumbência das partes passivas que promovam o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado nos termos da Constituição, implicando apenas em um processo de monitoramento a que tais partes estão obrigadas dando a este um caráter público, como direito à informação pelos que vivem no cenário de risco.
Por certo, a não promoção do direito fundamental implicará em sanções civis e penais, mas tal assusta apenas aqueles que não querem cumprir a Constituição.
O poder jurisdicional como efetivador das garantias, diante da inércia ou omissão do poder executivo, deve prover para além da forma, seja por encaminhamento a legitimado pela lei, seja porque a Fundação Acangaú tem como meta-objetivo a conservação e uso sustentado dos ecossistemas, o que reflete a proposição constitucional de meio ambiente ecologicamente equilibrado, seja mesmo pela ousadia de estender a legitimação "ad processum" a uma representação coletiva de propósito.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000)
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
O indeferimento liminar foi, sem dúvida, de enorme gravosidade para a postulante pois a precaução foi retardada, mas o Direito foi restaurado, enfim.
O próprio texto em comento demonstra que o Juiz atacado na verdade estava correto. Consta que: “A fundação recorreu da decisão visto que constituída na forma da lei anterior não teve o seu estado jurídico afetado, pois a lei nova regula a constituição de novas fundações”.
ResponderExcluirOcorre que o Código Civil de 2002 é expresso ao estabelecer que:
“Art. 2.031. As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de 2007”.
Assim, se se confessa que a fundação Acangaú foi constituída para a defesa dos ecossistemas e não para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência, não há como dizer que ela encontra-se regularmente constituída”.
Caro Anônimo, ainda é vigente o princípio TEMPUS REGIT ACTUM segundo o qual os atos são regidos pela lei do tempo em que foram praticados. Lei nova não desconstitui atos praticados antes dela que tenham objeto lícito e forma prescrita em lei, e tanto é assim que o TJGO entendeu ser a Fundação Acangaú parte legítima para a ACP
ResponderExcluirEmbora a lei não tenha alterado os atos praticados antes ela determina a extinção da fundação caso impossível a sua finalidade (art. 69 do CC e 1.204 do CPC).
ResponderExcluirAinda, dispõe o Art. 2.035 do CC que: A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes deteminada forma de execução.
Então, cá para nós, esse tal princípio do tempus regit actum não garantiria a legitimidade da Acangaú.
Retificação, onde se lê TJGO leia-se TJMG.
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