domingo, 15 de fevereiro de 2015

Como a Kinross trata suas vítimas em Paracatu

Por Sergio U. Dani, de Berna, Suíça

A publicação do artigo ‘Mineração dos Ossos’ na revista Ciência Hoje [1] provocou a reação tradicional da Kinross Gold Corporation e certos ‘especialistas’ e jornalistas de plantão: negar, mentir e tentar confundir suas vítimas, como se todos fôssemos burros e idiotas.

Um representante da Kinross chegou ao absurdo de dizer que ‘não existe qualquer evidência na literatura técnica e científica mundial de que a mineração de rochas e minérios auríferos sejam causadores de contaminação por arsênio’. Tenha paciência! Centenas de estudos publicados em revistas científicas de circulação internacional provam exatamente que a mineração de ouro é a principal fonte de liberação de arsênio para o ambiente [2] e causadora de sérios danos à saúde humana, das plantas e dos animais [3].

O representante da Kinross omite até mesmo um relatório oficial do Estado de Minas Gerais, preparado por cientistas e técnicos brasileiros e alemães e publicado em 2008, mostrando o grave problema da contaminação ambiental e do compartimento humano pelo arsênio liberado pela mineração de ouro no Quadrilátero Ferrífero  [4].

Desde 2009, a Kinross e a Prefeitura Municipal de Paracatu figuram como rés em uma Ação Civil Pública de precaução movida pela Fundação Acangau. Esta ação exige o custeio, por parte da Kinross, de um estudo epidemiológico clínico-laboratorial da intoxicação crônica da população de Paracatu pelo arsênio liberado pela Kinross. O estudo deveria ser conduzido por profissionais com competência comprovada através de currículo, de forma independente da indústria e do governo.

Até o momento, o Ministério Público Estadual não conseguiu fazer a Kinross atender essa exigência. Em vez disso, um ‘estudo’ foi contratado pela prefeitura de Paracatu, sem licitação, e pago, com dinheiro do contribuinte, ao CETEM, um órgão do governo, por intermédio de uma empresa privada, a FUNCATE. Dois detalhes saltam aos olhos nessa história: há anos, o CETEM presta serviços à Kinross, e o próprio governo federal representa fortemente o interesse da indústria da mineração, fonte escancarada de recursos para a corrupção visível.

O ‘estudo’ coordenado por Zuleica Castilhos (uma farmacêutica e bioquímica do CETEM) cometeu a façanha de reunir erros metodológicos tão grosseiros e resultados tão pobres e inconsistentes que simplesmente não permitem tirar conclusões acerca da situação epidemiológica da intoxicação crônica da população de Paracatu pelo arsênio liberado pela Kinross.

Interessante é o caso da química Virgínia Ciminelli, professora da UFMG com fortes ligações pessoais e profissionais com o governo e a indústria de mineração. Ciminelli recebe apoio financeiro da Kinross para fazer estudos de interesse da transnacional canadense em Paracatu. Seu marido, Renato Ciminelli transita pela indústria de mineração e o governo. 

Virgínia Ciminelli compareceu a um seminário organizado pela Kinross em Paracatu para dizer que ‘todos os dados aos quais teve acesso sobre possível contaminação na água, casos de poeira e contaminação clínica, arsenopirita e cianeto nenhum desses resultados apontam nenhum risco para a população paracatuense, que pode ficar tranqüila’. Obviamente, ninguém ficou tranqüilo com tanto disparate. Ciminelli não é médica, não possui competência profissional na área de saúde, mas anda fazendo diagnóstico e aconselhamento em Paracatu.

Para terminar o festival de afirmações absurdas e análises fraudulentas, uma jornalista entrevistou o médico Gustavo Baumgratz Lopes, presidente da Sociedade Mineira de Cancerologia [5]. Lopes aparentemente nunca esteve em Paracatu e nunca publicou sequer um único estudo científico sobre a intoxicação crônica por arsênio. Seu nome simplesmente não consta em nenhum dos principais bancos de dados de publicações científicas, Pubmed e Scopus.

Esse colega teria afirmado que as pessoas de Paracatu não estariam adoecendo de câncer por causa do arsênio, e sim por causa de uma certa ‘tendência mundial devido ao avanço dos diagnósticos, que são cada vez mais precoces, bem como à maior longevidade da população e ao estilo de vida sedentário.’ Lopes claramente desconhece a distribuição etária da população de Paracatu, a nosologia do município e suas precárias condições de assistência à saúde.

Para Lopes, ‘o aumento do número de pacientes com câncer, no mundo, se deve à mudança dos hábitos das pessoas, principalmente as ligadas ao tabagismo, comum entre as décadas de 1960 e 1980. A obesidade e o sedentarismo também têm relação cada vez mais forte com o aparecimento de tumores’.

Em outras palavras, o discurso de Lopes tende a jogar a culpa nos pacientes – os pacientes e seus péssimos hábitos de saúde seriam os culpados pelo câncer, não a poluição ambiental causada pela transnacional canadense Kinross.

Mais adiante na entrevista, o colega afirma que ‘os tipos de câncer mais comuns causados pelo arsênio são do pulmão (localizado na pleura) e de bexiga’. Aparentemente, o colega confundiu o arsênio com o asbesto, causador de mesotelioma. ‘Se houvesse um surto de câncer de bexiga, aí sim, teríamos um elemento mais forte para fazer a associação’, insiste Lopes.

O desconhecimento da literatura médica e científica pelo representante dos oncologistas mineiros é lamentável e perigoso. A Kinross se aproveita de estudos epidemiológicos fraudulentos conduzidos por não-médicos e afirmações levianas de médicos despreparados para continuar impune suas atividades geocidas e genocidas em Paracatu.

A atenção que a Kinross dá à questão em Paracatu é tentar demonstrar que a poeira fugitiva da mina não oferece perigo nem causa dano e que as pessoas expostas dezenas de anos ao arsênio presente na poeira estão adquirindo câncer ‘por conta própria’, ao invés de simplesmente realizar o levantamento epidemiológico examinando pessoas.

Finalmente, o tratamento perverso que a Kinross dá às suas vítimas em Paracatu é submetê-las às opiniões de certos ‘especialistas’ mais interessados em defender a transnacional, que em esclarecer e resolver o problema da intoxicação crônica da população pelo arsênio.


Referências: 

[1] Dani SU. 2014. A mineração dos ossos. Ciência Hoje 321:22-27.

[2] Dani SU. 2010. Gold, coal and oil. Medical Hypotheses 74:534–541.

[3] Eisler R. 2004. Arsenic hazards to humans, plants, and animals from gold mining. Rev Environ Contam Toxicol. 180:133-65.

[4] Arsênio Antropogênico e Natural - Um estudo em regiões do Quadrilátero Ferrífero. FEAM, Belo Horizonte, 2008. Estudo coordenado pela Enga. Quimica Eleonora Deschamps, financiado pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). Esse trabalho teve como parceiras a Fundação Ezequiel Dias (Funed), a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Universidade de Freiberg e o Instituto de Química da Água, da Alemanha.

[5]  Suposta liberação de arsênio por mineradora assusta população de Paracatu. Reportagem de Fernanda Nazaré, publicada em 09/02/2015 no http://sites.uai.com.br/app/noticia/encontrobh/atualidades/2015/02/09/noticia_atualidades,152200/suposta-liberacao-de-arsenio-por-mineradora-assusta-populacao-de-parac.shtml

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