Por Sergio U. Dani, de Berna, Suíça
A publicação do artigo ‘Mineração dos Ossos’ na revista Ciência Hoje [1]
provocou a reação tradicional da Kinross Gold Corporation e certos
‘especialistas’ e jornalistas de plantão: negar, mentir e tentar confundir suas
vítimas, como se todos fôssemos burros e idiotas.
Um representante da Kinross chegou ao absurdo de dizer que ‘não existe
qualquer evidência na literatura técnica e científica mundial de que a
mineração de rochas e minérios auríferos sejam causadores de contaminação por
arsênio’. Tenha paciência! Centenas de estudos publicados em revistas científicas
de circulação internacional provam exatamente que a mineração de ouro é a
principal fonte de liberação de arsênio para o ambiente [2] e causadora de sérios
danos à saúde humana, das plantas e dos animais [3].
O representante da Kinross omite até mesmo um relatório oficial do
Estado de Minas Gerais, preparado por cientistas e técnicos brasileiros e
alemães e publicado em 2008, mostrando o grave problema da contaminação
ambiental e do compartimento humano pelo arsênio liberado pela mineração de
ouro no Quadrilátero Ferrífero [4].
Desde 2009, a Kinross e a Prefeitura Municipal de Paracatu figuram como
rés em uma Ação Civil Pública de precaução movida pela Fundação Acangau. Esta
ação exige o custeio, por parte da Kinross, de um estudo epidemiológico
clínico-laboratorial da intoxicação crônica da população de Paracatu pelo
arsênio liberado pela Kinross. O estudo deveria ser conduzido por profissionais
com competência comprovada através de currículo, de forma independente da
indústria e do governo.
Até o momento, o Ministério Público Estadual não conseguiu fazer a
Kinross atender essa exigência. Em vez disso, um ‘estudo’ foi contratado pela
prefeitura de Paracatu, sem licitação, e pago, com dinheiro do contribuinte, ao
CETEM, um órgão do governo, por intermédio de uma empresa privada, a FUNCATE.
Dois detalhes saltam aos olhos nessa história: há anos, o CETEM presta serviços
à Kinross, e o próprio governo federal representa fortemente o interesse da
indústria da mineração, fonte escancarada de recursos para a corrupção visível.
O ‘estudo’ coordenado por Zuleica Castilhos (uma farmacêutica e
bioquímica do CETEM) cometeu a façanha de reunir erros metodológicos tão
grosseiros e resultados tão pobres e inconsistentes que simplesmente não
permitem tirar conclusões acerca da situação epidemiológica da intoxicação
crônica da população de Paracatu pelo arsênio liberado pela Kinross.
Interessante é o caso da química Virgínia Ciminelli, professora da UFMG
com fortes ligações pessoais e profissionais com o governo e a indústria de
mineração. Ciminelli recebe apoio financeiro da Kinross para fazer estudos de
interesse da transnacional canadense em Paracatu. Seu marido, Renato Ciminelli
transita pela indústria de mineração e o governo.
Virgínia Ciminelli compareceu a um seminário organizado pela Kinross em Paracatu
para dizer que ‘todos os dados aos quais teve acesso sobre possível contaminação
na água, casos de poeira e contaminação clínica, arsenopirita e cianeto nenhum
desses resultados apontam nenhum risco para a população paracatuense, que pode
ficar tranqüila’. Obviamente, ninguém ficou tranqüilo com tanto disparate.
Ciminelli não é médica, não possui competência profissional na área de saúde,
mas anda fazendo diagnóstico e aconselhamento em Paracatu.
Para terminar o festival de afirmações absurdas e análises fraudulentas,
uma jornalista entrevistou o médico Gustavo Baumgratz Lopes, presidente da
Sociedade Mineira de Cancerologia [5]. Lopes aparentemente nunca esteve em
Paracatu e nunca publicou sequer um único estudo científico sobre a intoxicação
crônica por arsênio. Seu nome simplesmente não consta em nenhum dos principais
bancos de dados de publicações científicas, Pubmed e Scopus.
Esse colega teria afirmado que as pessoas de Paracatu não estariam
adoecendo de câncer por causa do arsênio, e sim por causa de uma certa
‘tendência mundial devido ao avanço dos diagnósticos, que são cada vez mais
precoces, bem como à maior longevidade da população e ao estilo de vida
sedentário.’ Lopes claramente desconhece a distribuição etária da população de
Paracatu, a nosologia do município e suas precárias condições de assistência à
saúde.
Para Lopes, ‘o aumento do número de pacientes com câncer, no mundo, se
deve à mudança dos hábitos das pessoas, principalmente as ligadas ao tabagismo,
comum entre as décadas de 1960 e 1980. A obesidade e o sedentarismo também têm
relação cada vez mais forte com o aparecimento de tumores’.
Em outras palavras, o discurso de Lopes tende a jogar a culpa nos
pacientes – os pacientes e seus péssimos hábitos de saúde seriam os culpados
pelo câncer, não a poluição ambiental causada pela transnacional canadense
Kinross.
Mais adiante na entrevista, o colega afirma que ‘os tipos de câncer mais
comuns causados pelo arsênio são do pulmão (localizado na pleura) e de bexiga’.
Aparentemente, o colega confundiu o arsênio com o asbesto, causador de
mesotelioma. ‘Se houvesse um surto de câncer de bexiga, aí sim, teríamos um
elemento mais forte para fazer a associação’, insiste Lopes.
O desconhecimento da literatura médica e científica pelo representante dos
oncologistas mineiros é lamentável e perigoso. A Kinross se aproveita de estudos
epidemiológicos fraudulentos conduzidos por não-médicos e afirmações levianas
de médicos despreparados para continuar impune suas atividades geocidas e
genocidas em Paracatu.
A atenção que a Kinross dá à questão em Paracatu é tentar demonstrar que
a poeira fugitiva da mina não oferece perigo nem causa dano e que as pessoas expostas
dezenas de anos ao arsênio presente na poeira estão adquirindo câncer ‘por
conta própria’, ao invés de simplesmente realizar o levantamento epidemiológico
examinando pessoas.
Finalmente, o tratamento perverso que a Kinross dá às suas vítimas em
Paracatu é submetê-las às opiniões de certos ‘especialistas’ mais interessados
em defender a transnacional, que em esclarecer e resolver o problema da
intoxicação crônica da população pelo arsênio.
Referências:
[1] Dani SU. 2014. A mineração dos
ossos. Ciência Hoje 321:22-27.
[2] Dani SU. 2010.
Gold, coal and oil. Medical Hypotheses 74:534–541.
[3] Eisler R. 2004. Arsenic
hazards to humans, plants, and animals from gold mining. Rev Environ Contam
Toxicol. 180:133-65.
[4] Arsênio Antropogênico e Natural - Um estudo em regiões do
Quadrilátero Ferrífero. FEAM, Belo Horizonte, 2008. Estudo coordenado pela
Enga. Quimica Eleonora Deschamps, financiado pelo Fundo Nacional do Meio
Ambiente (FNMA). Esse trabalho teve como parceiras a Fundação Ezequiel Dias (Funed),
a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), a Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), a Universidade de Freiberg e o Instituto de Química da
Água, da Alemanha.
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