Quando, como e por que o arsênio acumula no organismo e causa doenças e morte
Por Sergio Ulhoa Dani (*)
O arsênio é um elemento tóxico semelhante a metal presente em algumas rochas da crosta terrestre. Em função das intempéries naturais ou de algumas atividades humanas sobre essas rochas, como a mineração, o arsênio se desprende para diversos compartimentos ambientais, onde é absorvido por microorganismos, plantas e animais.
O metabolismo de alguns seres vivos é capaz de transformar as formas inorgânicas tóxicas do arsênio em compostos orgânicos, menos tóxicos. Algumas espécies de plantas e animais acumulam mais arsênio que outras. Abelhas são muito sensíveis ao arsênio. Elas podem acumular quantidades muito maiores de arsênio que outros insetos. Certos microorganismos, como fungos (p.ex., Penicillium brevicaule) e bactérias presentes em plantas e no solo podem reduzir o arsênio a uma forma altamente tóxica, a trimetilarsina.
O arsênio tende a ser lavado dos continentes para o mar, onde boa parte é transformada em arsênio orgânico, num processo que dura centenas, milhares ou milhões de anos e tende a dispersar o elemento. Concentrações anormais de arsênio livre no ambiente denotam a liberação de arsênio novo por uma fonte ativa: atividades geológicas naturais localizadas, como vulcanismo e fontes hidrotermais, e atividades humanas, como a mineração.
A mineração de rocha dura libera arsênio novo para o ambiente
A principal fonte de liberação de arsênio novo para o ambiente é a mineração de rocha dura, e especialmente a mineração de ouro, porque o ouro ocorre na natureza juntamente com o arsênio. As fontes de liberação de arsênio para a biosfera associadas à mineração de ouro incluem solos e rochas não aproveitadas, água residual de locais com concentração de minério, oxidação de alguns tipos de minérios de ouro para a remoção de enxofre e óxidos de enxofre e a lixiviação aumentada por bactérias. As concentrações de arsênio nas proximidades das operações de mineração de ouro estão elevadas em materiais abióticos e na biota.
Numa revisão feita em 2004, Eisler verificou que os trabalhadores de minas de ouro apresentam uma variedade de problemas de saúde associados ao arsênio, incluindo excesso de mortalidade por câncer de pulmão, estômago e trato respiratório.
Mineradores e crianças em idade escolar nas vizinhanças das atividades de mineração de ouro apresentam níveis elevados de arsênio na urina. Nas populações analisadas, cerca de 20% das pessoas apresentaram concentrações elevadas de arsênio na urina associadas aos efeitos adversos futuros.
Quanto maior a quantidade de arsênio e chumbo no ambiente, maior é a absorção desses elementos e maiores são os efeitos danosos à saúde (Chang e cols., 2008). Em 2003, Yáñez e colaboradores encontraram uma freqüência de dano ao DNA aumentada em crianças que vivem em locais onde as concentrações de arsênio e chumbo estão aumentadas na camada superficial dos solos e na poeira doméstica.
Critérios para a proteção da saúde humana e dos recursos naturais contra o arsênio foram listados e discutidos por Eisler (2004). Muitos desses critérios não protegem adequadamente as espécies sensíveis de plantas e animais.
Efeitos imediatos e a longo prazo da exposição ao arsênio
As formas inorgânicas do arsênio, como o trióxido de arsênio, são venenos clássicos para plantas, animais e para o ser humano. Em dose alta, arsênio mata imediatamente como um agente neurotóxico; em doses baixas por longos períodos, mata como um agente cancerígeno.
“Arsênio é um elemento pouco usual, no sentido de que existem dados epidemiológicos humanos de qualidade científica aceitável para a avaliação dos riscos à saúde associados à exposição de longo prazo ao arsênio, o qual tem uma relação causal com os riscos aumentados de câncer de pele, pulmão, bexiga e rins, bem como outras alterações da pele, como hiperceratose e alterações da pigmentação. Esses efeitos têm sido claramente demonstrados em um número de estudos epidemiológicos de diferentes desenhos. Altos riscos e relações de exposição-dose têm sido observados para cada um desses pontos terminais.” [WHO, 2001]
Um grama de arsênio inorgânico não tem cheiro nem gosto e pode matar rapidamente até 10 pessoas. Após um período de adaptação, alguns seres humanos adultos saudáveis podem tolerar até 0,5 g de arsênio/dia, por algum tempo. Entretanto, a adaptação e a tolerância não são completas nem duradouras. Elas são funções da constituição genética, do estado fisiológico e do estado nutricional, envolvendo fatores ambientais como, por exemplo, a disponibilidade de selênio em quantidade adequada no ambiente e na dieta.
Organismos mal-nutridos utilizam mais o arsênio que organismos sadios, e de uma forma diferente. Uma das reações do corpo humano ao arsênio é o aumento da produção das células sanguíneas, donde o efeito terapêutico de pequenas doses de arsênio receitadas no passado. Ao longo prazo, entretanto, a adaptação e a aparente tolerância ao arsênio podem desaguar em câncer, doenças vasculares e diabetes, entre outras.
“Alguns estudos epidemiológicos chamaram a atenção para o fato de algumas populações expostas a arsênio ambiental não terem demonstrado qualquer manifestação clínica de toxicidade crônica por arsênio. Além disso, há uma ampla variação na incidência de arsenicose crônica em uma população afetada. Mesmo em uma família afetada, nem todos os membros da família mostram efeitos clínicos. A razão para tal variação na expressão da doença é um enigma. Entretanto, como as pessoas expostas ao arsênio estão em risco de desenvolver câncer relacionado ao arsênio, elas necessitam de acompanhamento prolongado.”[WHO, 2001]
Absorção, metabolismo, eliminação e acumulação
As vias oral e respiratória respondem por 90% da absorção de arsênio. A absorção pela pele também pode ocorrer. As taxas de absorção variam de 25-40% para o trato respiratório a 80% para o trato digestivo. Essas taxas podem sofrer variações sob influência de fatores como a idade do indivíduo e a composição mineral dos alimentos e da atmosfera.
Uma vez absorvido, o arsênio distribui-se rapidamente por todos os tecidos do corpo onde pode ser metabolizado em graus variáveis, e é eliminado principalmente pelos rins. Um relatório da FAO/WHO estabelece provisoriamente como tolerável uma quantidade máxima absorvida de arsênio inorgânico de 0,002 mg/kg de peso corporal/dia. Entretanto, como o arsênio é uma substância cancerígena, não se pode falar em dose segura de exposição ao arsênio.
Mesmo expostas a doses consideradas toleráveis, durante longos períodos, pessoas saudáveis e especialmente pessoas com função renal comprometida ou idosos (que geralmente manifestam algum grau de comprometimento da função renal) acumulam arsênio em quantidades tóxicas.
O processo de eliminação apresenta um gradiente de concentração, que pode ser representado por uma função exponencial simples:
Ct = C0 * e(-bt)
Ct é a concentração num órgão ou no corpo no tempo t; C0 é a concentração num órgão ou corpo no tempo 0; b é a constante de eliminação específica do elemento e t é o tempo. O tempo decorrido até que a concentração de um elemento absorvido seja reduzida à metade é chamado de meia-vida do elemento. Meia-vida curta significa rápida eliminação do elemento; meia vida longa significa lenta eliminação.
Se as quantidades absorvidas em um determinado período forem pequenas e os intervalos entre exposições consecutivas forem longos em relação à meia-vida do elemento, então o elemento não se acumulará no órgão ou no corpo. Se, ao contrário, a dose administrada ou absorvida for alta e o intervalo entre as exposições for curto, ou se a meia-vida do elemento for longa, então o elemento acumulará no organismo.
O acúmulo de arsênio acontece mesmo em pessoas saudáveis, em decorrência de exposições crônicas a doses consideradas baixas, normais ou toleráveis, sem que as pessoas apresentem sinais clínicos de intoxicação, e pode ser agravado por diversas condições fisiológicas, patológicas e ambientais.
Na literatura científica encontram-se valores de meia-vida do arsênio que variam de 2-30 horas
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A taxa de eliminação do arsênio influencia a sua meia-vida. Diversas condições fisiológicas, patológicas e ambientais, isoladamente ou em conjunto, podem aumentar a meia-vida de eliminação do arsênio, por exemplo: a idade e a constituição genética, a insuficiência cardíaca, a insuficiência renal e a insuficiência hepática, e a formação de compostos de arsênio e chumbo.
Cada órgão tem um valor diferente de saturação, que se reflete em padrões variáveis de acúmulo. As maiores concentrações do elemento podem ser encontradas nos ossos, pulmão e pele.
Estudos científicos realizados em humanos e animais comprovam que o arsênio se acumula no organismo com o passar do tempo (Figura 1). Quanto maior a duração e a intensidade da exposição ao arsênio, maiores serão os efeitos danosos à saúde humana a longo prazo, como câncer, doenças cardiovasculares e diabetes.
Figura 1. Gráfico do acúmulo de arsênio no corpo humano durante a vida. Esse gráfico foi elaborado a partir das concentrações médias obtidas por Raie (1996) em material de autópsia de pacientes de Glasgow sem sinal clínico de arsenicose, que morreram por causas externas, como acidentes. Observe que mesmo nessas condições de acumulação sub-clínica, a quantidade acumulada encontra-se acima do valor provisoriamente considerado tolerável pela WHO (i.e. = 0,002 mg/kg). O aspecto do gráfico é compatível com o modelo experimental animal de Marafante e colaboradores (1982).
A partir dos dados disponíveis na literatura científica, foi possível construir o gráfico da Figura 2, que ilustra um modelo de acúmulo de arsênio em uma população cronicamente exposta a doses crescentes de arsênio.
Figura 2. Gráfico ilustrativo do modelo de acúmulo de arsênio em uma população cronicamente exposta a doses crescentes do metalóide tóxico. As curvas A-D correspondem às curvas teóricas de acúmulo após exposição crônica às seguintes doses crescentes de arsênio (em microgramas/dia): A, 12 ug/dia; B, 15 ug/dia; C, 20 ug/dia; D, 38 ug/dia. Observe o padrão exponencial de acúmulo, i.e., pequenos acréscimos na dose diária causam grandes aumentos na concentração corporal de arsênio, e consequentemente o deslocamento da curva de acúmulo para cima. As curvas B-D não se verificariam na realidade de uma população cronicamente exposta, porque a maioria dos pacientes morreria quando o acúmulo de arsênio alcançasse a dose letal.
Para um homem de 70 kg, a dose letal seria alcançada a partir da curva A (exposição crônica a 12 ug/dia, resultando em uma concentração de arsênio de até 1 mg/kg de peso corporal), dependendo da capacidade de tolerância individual ao arsênio. Além da dose diária, a capacidade de tolerância individual e a mortalidade decorrentes da exposição crônica ao arsênio são determinantes do tipo de curva de acumulação verificado na realidade. Os dados usados para construir este modelo foram obtidos da literatura citada ao final deste artigo.
Não existe tratamento eficiente para a intoxicação crônica por arsênio. A única alternativa eficiente é a inativação da fonte poluidora da água, alimentos e atmosfera.
Conclusões:
1. Altas concentrações de arsênio livre no ambiente são claramente decorrentes de atividades humanas, como a mineração.
2. O arsênio é absorvido principalmente por via oral (água, alimentos, objetos contaminados) e respiratória (poeira, gases).
3. Arsênio é veneno tanto em doses altas quanto em doses baixas. Em doses altas, a morte é imediata; em doses baixas o arsênio causa câncer e outras doenças ao longo prazo. Como o arsênio é uma substância cancerígena, não existe dose segura para exposição ao arsênio.
4. Mesmo em doses consideradas toleráveis e durante exposição crônica ao arsênio na água, alimentos e atmosfera, o arsênio se acumula no organismo humano saudável, causando ou agravando efeitos danosos à saúde.
5. Mesmo quando as populações expostas cronicamente ao arsênio não apresentam nenhum sinal clínico de intoxicação, ainda assim elas estão sujeitas ao risco de desenvolver câncer relacionado ao arsênio. Por isso, elas necessitam de acompanhamento prolongado.
6. Não existe tratamento eficiente para a intoxicação crônica por arsênio. As únicas alternativas eficientes são a inativação das fontes poluidoras da água, alimentos e atmosfera, ou a prevenção da ativação de novas fontes poluidoras.
(*) Médico, doutor em medicina e patologia, livre-docente em genética, escrevendo de Göttingen, Alemanha, em 10 de julho de 2009, para o Alerta Paracatu. srgdani@gmail.com.
Referências:
Chiang WF, Yang HJ, Lung SC, Huang S, Chiu CY, Liu IL, Tsai CL, Kuo CY. 2008. A comparison of elementary schoolchildren's exposure to arsenic and lead. Journal of Environmental Science and Health C Environmental Carcinogenesis and Ecotoxicological Reviews. 26(3):237-55.
Eisler R. 2004. Arsenic hazards to humans, plants, and animals from gold mining. Reviews in Environmental Contamination and Toxicology 180:133-65.
Fiedler HJ, Rösler HJ (Eds.) Spurenelemente in der Umwelt. Gustav Fisher Verlag Jena, Stuttgart, 1993.
WHO, 2001. United Nations Synthesis Report on Arsenic in Drinking-Water. Acessível a partir de: http://www.who.int/water_sanitation_health/dwq/arsenic3/en/
Marafante E, Bertolero F, Edel J, Pietra R & Sabbioni E. 1982. Intracellular interaction and biotransformation of arsenite in rats and rabbits. Science of the Total Environment 24:27-39.
Raie, RM. 1996. Regional variation in As, Cu, HG, and Se and interaction between them. Ecotoxicology and Environmental Safety 35:248-252.
Yáñez L, García-Nieto E, Rojas E, Carrizales L, Mejía J, Calderón J, Razo I, Díaz-Barriga F. 2003. DNA damage in blood cells from children exposed to arsenic and lead in a mining area. Environmental Research 93(3):231-40.
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