Por Sergio Ulhoa Dani (*), de Berna,
Suíça
A mineradora transnacional Kinross [1] afirma
que não há risco de intoxicação crônica por arsênio em Paracatu. Antes de tudo,
gostaria de esclarecer que a Kinross não
tem competência para fazer diagnóstico e aconselhamento médico em Paracatu e
nem tampouco está numa condição ética que lhe permita faze-lo, vez que a
Kinross é a própria autora da contaminação ambiental por arsênio e outras substâncias
tóxicas em Paracatu.
Ninguém – nem mesmo a própria Kinross –
pode negar que as quantidades exorbitantes de arsênio que a Kinross libera da rocha dura em Paracatu
representam um risco à saúde. Gostaria de citar apenas dois dos diversos estudos
realizados em Paracatu que caracterizam essa situação de risco. Um estudo da
Universidade de Lavras, financiado pela própria Kinross e publicado em 2011 indica
que uma fração do arsênio que a Kinross libera em Paracatu está bioacessível [2].
Isso quer dizer que o arsênio liberado é
absorvido pelas plantas, animais e seres humanos. Um estudo independente da
Universidade Federal de Minas Gerais comprova que o arsênio liberado pela
Kinross já está passando para a cadeia alimentar [3].
Em Paracatu, uma importante via de
exposição ao arsênio é a respiratória. Em seu “Relatório de Desenvolvimento
Sustentável” de 2003 (página 14), a Kinross mostrava que a quantidade de
arsênio na "poeira fugitiva" da sua mina de ouro a céu aberto em
Paracatu aumentou de 3,42 kg em 2001, para 5,79 kg em 2002, e para 6,10 kg em
2003. Parece pouco, se comparado com as centenas
de milhares de toneladas de arsênio que a mineradora libera da rocha dura em Paracatu. Mas,
apenas um grama de um composto oxidado de arsênio é suficiente para matar 7
pessoas adultas. Quantidades bem menores podem causar um catálogo de doenças
crônicas, inclusive diversas formas de câncer. Em 30 anos de mineração e
liberando, em média, 5 kg de arsênio na poeira todos os anos, a Kinross seria
responsável pela administração de uma dose letal para mais de um milhão de
pessoas, ou um número muito maior de pessoas, se considerarmos os efeitos
crônicos do arsênio.
Os gases, aerosóis e poeira são
facilmente inalados por via respiratória e assim penetram rapidamente no corpo
humano. Os compostos de arsênio são
absorvidos muito rapidamente pelos pulmões e intestinos, enquanto a absorção
através da pele é comparativamente lenta [4]. A absorção de matéria
transportada pela atmosfera contribui significativamente para a quantidade
total de arsênio absorvida [5].
Não
existe dose segura para uma substância cancerígena como o arsênio. Parte do arsênio absorvido é eliminada do corpo,
principalmente através da urina. Outra parte é incorporada aos tecidos,
principalmente os ossos, onde o arsênio toma o lugar do fósforo nos cristais de
hidroxiapatita. Essa parte é eliminada muito lentamente.
Na prática, a eliminação do arsênio pelo
corpo não é completa, e se divide em duas fases: uma rápida e outra muito lenta.
Na medicina e na farmacologia, dá-se o nome de meia-vida inicial de uma substância ao tempo necessário para que
metade dessa substância seja eliminada pelo corpo. A meia-vida inicial do arsênio varia de horas a dias ou semanas. A
meia-vida terminal refere-se ao tempo necessário para que metade da substância ligada
aos tecidos seja eliminada. A meia-vida
terminal do arsênio varia de meses a anos ou décadas.
A meia-vida terminal do arsênio está
muito aumentada em pessoas expostas cronicamente ao arsênio, como os habitantes
de Paracatu. Mesmo as pessoas que
deixaram a cidade fugindo do arsênio carregam consigo esse ônus da mineradora
Kinross.
Uma pessoa cronicamente exposta ao
arsênio acumula esse veneno nos ossos. Os ossos são uma espécie de reservatório
do veneno. Todos os dias da vida dessa pessoa, parte do arsênio presente nos
ossos é mobilizada para a circulação sanguínea. Isso mantém a intoxicação
crônica, mesmo depois que a vítima deixou de se expor ao arsênio. O dano causado é persistente.
Em 2012, quando trabalhava na
Universidade de Heidelberg, na Alemanha, descrevi o mecanismo da intoxicação osteoressortiva pelo arsênio
em uma paciente proveniente de Minas Gerais [6]. A intoxicação crônica favorece o aparecimento de diversos tipos de câncer,
além de um catálogo de outras doenças. A relação entre exposição crônica ao
arsênio e diversas doenças, especialmente câncer, está muito bem documentada em
centenas de estudos realizados em diversos países do mundo.
O caso de Paracatu é um escândalo. Os
órgãos do governo concederam autorização para mineração em zona urbana. Mas,
ninguém concedeu autorização para expor a população ao veneno! Está muito claro
que a mineração em zona urbana conforme conduzida pela Kinross é incompatível
com a proteção do meio ambiente e da saúde da população. Esses são princípios
constitucionais, nenhuma lei ou ato do poder executivo pode desrespeitar esses
princípios.
Tecnicamente,
a mineradora está cometendo um genocídio culposo em Paracatu. Pelo ordenamento
jurídico brasileiro, genocídio culposo não gera processo criminal, mas gera a
obrigação de indenizar.
Um dos objetos da Ação Civil Pública
proposta pela Fundação Acangau em 2009 contra a Kinross e a Prefeitura de
Paracatu é fazer o monitoramento clínico-laboratorial de toda a população de
Paracatu. Esse é um estudo amplo, exige financiamento, planejamento e logística
adequados. O estudo deve ser coordenado e conduzido por médicos e cientistas com competência
comprovada através de currículo e independentes da mineradora e do governo. A
mineradora tem a obrigação de custear o estudo. O Ministério Público deve
exigir o custeio, mas a contratação da equipe deve ser independente da
mineradora e do governo.
Uma medida que deve ser exigida é a
prestação de caução pela mineradora, para a indenização das pessoas afetadas
pela mineração. A Kinross está fazendo de tudo para escapar dessa obrigação. A mineração de ouro em Paracatu só é
rentável para a Kinross porque está sendo financiada pela contaminação
ambiental (geocídio) e a intoxicação crônica de milhares de seres humanos
(genocídio).
Cada indenização pode alcançar a cifra
de milhões de dólares. Multiplicando-se esse valor pelo número de habitantes de
Paracatu, chega-se às cifras dos bilhões de dólares. Entende-se porque a
mineradora quer encobrir os danos que ela causa.
Hoje, a população de Paracatu está muito
mais esclarecida e mobilizada que há 8 anos, quando ninguém falava sobre os riscos do arsênio, simplesmente porque não havia sido informado sobre os riscos pela
mineradora ou pelas autoridades governamentais. Somente 20 anos após o início
da mineração, a população foi informada, não por iniciativa da mineradora, mas
por iniciativa de médicos, cientistas, advogados, fotógrafos, cinegrafistas, jornalistas, o Ministério
Público e até mesmo artistas, poetas e cantadores.
Considero que cobrimos bastante chão
nesses anos, no sentido do esclarecimento da população sobre os riscos e danos provocados
pela mineração de ouro. As provas disso são os estudos científicos publicados em
revistas especializadas de circulação internacional, as denúncias e matérias publicadas
em veículos de circulação local, nacional e internacional [6]. Mas muito ainda
há para ser feito nos próximos anos, principalmente no sentido do
monitoramento, indenização e saneamento.
Referências
e notas:
(*) Médico e cientista do Departamento
de Oncologia Médica da Universidade de Berna, Suíça. Colaborador e fundador do
Instituto Medawar da Fundação Acangau de Paracatu. Conduziu estudos sobre intoxicação
crônica por arsênio em colaboração com as seguintes instituições: Instituto
Medawar (Fundação Acangau), Centro de Pesquisa de Jülich (Forschungszentrum
Jülich), Alemanha; Universidade Técnica de Freiberg (TU Bergakademie Freiberg),
Alemanha; Departamento de Medicina Interna e Laboratório Clínico da
Universidade de Heidelberg, Alemanha, Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade
de Medicina da Universidade de Tübingen, Alemanha.
[1] A Kinross Gold Corporation (TSE-K;
NYSE-KGC), ou simplesmente "Kinross" é uma mineradora transnacional
com sede no Canadá.
[2] Ono
FB, Guilherme LR, Penido ES, Carvalho GS, Hale B, Toujaguez R, Bundschuh J. Arsenic
bioaccessibility in a gold mining area: a health risk assessment for children. Environ
Geochem Health. 2012;34:457-65.
[3] Rezende
PS, Costa LM, Windmöller CC. Arsenic Mobility in Sediments from Paracatu River
Basin, MG, Brazil. Arch Environ Contam Toxicol. 2015 Feb 12. [Epub ahead of
print]
[4] Savory J , Wills MR. 1984. Arsenic. In: Merian E, Editor, 1984. Metalle in der Unwelt, VCH Publ, Weinheim, pp. 319–334.
[5] Matschullat
J, Borba RP, Deschamps E, Figueiredo BR, Gabrio T, Schwenk M. 2000. Human and
environmental contamination in the Iron Quadrangle, Brazil. Appl Geochem 15:181-190.
[6] Dani SU. 2013. Osteoresorptive
arsenic intoxication. Bone 53:541-5.
[7] Entre as teses, documentários, matérias jornalísticas e de
divulgação científica citam-se: o documentário “Ouro de Sangue” (Pervitin
Filmes, 2008) de autoria dos paracatuenses Sandro Neiva e Alessandro Silveira; a
reportagem “Sob o Peso do Ouro” (jornal Estado de Minas, 2008) do jornalista
Bernardino Furtado; a tese “O Ouro e a Dialética Territorial em Paracatu”, do
Prof. Márcio José dos Santos; a tese da Doutora Laure Terrier defendida na Universidade de Paris em 2011; as centenas de artigos publicados no www.alertaparacatu.blogspot.com;
a reportagem “Der giftige Schatz von Paracatu” (“O Tesouro Venenoso de Paracatu”)
do jornalista alemão Thomas Fischermann, publicada em 2014 na Alemanha, pelo jornal
“Die Zeit”, o maior semanário alemão; o
artigo “Mineração dos Ossos” (2014) publicado na revista Ciência Hoje, e agora a
reportagem do quadro "Proteste Já" do Programa CQC da TV BAND,
exibido dia 9 de março passado, entre diversas outras.
Mais do que um alerta, um libelo contra a conduta do capital estrangeiro predador, que come a cidade pelas beiradas com a anuência do então Prefeito e edis que sabedores da chacina que iria pairar sobre a cidade de Paracatu, ainda assim autorizaram em sessão da Câmara que fossem cedidas as nascentes do vale do Machadinho para se tornarem uma das maiores lagoas de escória do mundo - não há reversão possível. Somente a contemplação de uma indenização milionária que baterá asas juntamente com o ultimo CEO da Mineradora no BR.
ResponderExcluirParabéns, pela qualidade do artigo e pelo destemor de sua luta. Seus trabalhos säo subsídios imprescindíveis para o esclarecimento sobre a açäo nefasta da mlneraçäo aurífera sobre a saúde humana e o meio ambiente.
ResponderExcluirOla! Dr. Sérgio Ulhôa Dani!
ResponderExcluirMuito triste eu fiquei por saber disso tudo!
Quando me disseram acerca do que estaria acontecendo na cidade, eu disse que isto já era uma história de muito tempo em que se falava que a água de Paracatu seria cancerígena. Claro que jamais vi neste assunto, algo que pudesse me preocupar, dado que a bem da verdade, era algo que se corria nas bocas de quem bem víamos que não entendiam do assunto em questão. Outra coisa era que a água de Paracatu provocava pedra nos rins! Outra baboseira!!
Mas!! Agora!! Fiquei pasmo!!
Como ainda acreditar que nos anos de pesquisa desta mineração – e aí cheguei em agosto de 1978 – nunca presenciei quem quer que fosse, daquela pesquisa, falando algo neste sentido? Seria o caso de pelo menos um, consciente, fazer o alerta!
Ah! Então, são tantas as consciências sem consciência que sabiam e nada disseram! Tudo foi feito em nome da empregabilidade na cidade. Geração de empregos. A bem da verdade qualquer um agora saberá que esta mineração nunca deveria nem ter iniciado.
Mas e agora? Tudo aconteceu em detrimento da saúde da população.
Sou filho adotivo desta cidade e também por ela dei a minha parte em seu progresso. Recebo com muita tristeza estas notícias de Paracatu; mas espero que encontrem uma solução justa no âmbito do que propõe o Ministério Público, no tocante a reverter esta sinistra situação a bem de uma cidade, a bem de uma sociedade, que saberá vencer os percalços que poderão advir nos anos que discorrerão os impasses judiciais.
Ao ilustre cientista nossos cumprimentos por brilhante matéria e brilhante consciência humana.
Botari
Compartilho de seus sentimentos, sr. Bottary.
ResponderExcluirTambém sou filho adotivo de Paracatu, e por isso faço parte de uma luta, por vezes desgastante, contra os interesses horrendos do capital.
Estamos nesse momento fazendo de tudo para alertar, sensibilizar e movimentar os habitantes da cidade.
Ola! Prezado Hander!!
ExcluirQue bom que estamos vendo pessoas como vc nesta luta. E que luta, héin?
Doravante estarei aqui sempre pensando nos que lutam por uma sociedade livre, mas sobretudo livre de poder respirar um ar onde se sabe de sua perfeita qualidade de sobrevida. Como eu disse em meus comentários, por esta eu nunca esperava, ainda mais sabendo que se tratava de uma empresa em que sempre se prezou ( ou não!), de certificados de qualidade de trabalho, sobretudo no tocante ao meio-ambiente. Não é esta que sempre trabalhou sob os olhos de uma NOSA?
E que NOSA, héin?
Eu posso até entender que o Capital deve sim dar as mãos ao Trabalho e vice-versa, mas com respeito mútuo, não é mesmo?
Creio que esta é uma particularidade em que infelizmente o brasileiro, com raríssimas exceções, ainda tem muito que aprender acerca do tema sustentabilidade.
Ao nobre senhor, desejo prosperidade em seus propósitos!