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segunda-feira, 9 de junho de 2014

Nossas vidas por um punhado de prata

Por Sergio U. Dani, de Bremen, Alemanha, 09 de junho de 2014

Todo mundo sabe que a corporação transnacional canadense, Kinross Gold Corporation libera um milhão de toneladas de arsênio das rochas da sua mina de ouro em Paracatu, Minas Gerais. A informação pode ser obtida da leitura atenta dos relatórios da própria corporação. 

Essa quantidade exorbitante de veneno tem o potencial de matar instantaneamente 7 trilhões de pessoas, ou seja, aniquilar mil vezes toda a humanidade. O morticínio não é evidente, porque “apenas” 4% do veneno está na forma “bioacessível”, e “apenas” uma pequena fração desses 4% efetivamente atinge as pessoas. Além disso, a exposição ao veneno acontece em doses homeopáticas, insuficientes para causar mortes instantâneas e evidentes, mas suficientes para causar um catálogo de doenças ao longo do tempo.

Se a Kinross conseguisse reter 99,999% de todo o arsênio “bioacessível” que ela extrai da rocha dura da mina de Paracatu, então “apenas” 4 toneladas de arsênio estariam efetivamente bioacessíveis. Isso é veneno suficiente para matar instantaneamente “apenas” 28 milhões de pessoas, ou intoxicar cronicamente um número ainda maior de pessoas. 

A metodologia de cálculo da EPA-Agência de Proteção Ambiental dos EUA indica que US$6 milhões são necessários para salvar uma vida estatística perdida em decorrência da intoxicação pelo arsênio. Então a canadense Kinross deveria desembolsar o equivalente a U$ 168 trilhões de dólares em medidas de saneamento ambiental e cuidado às vítimas nos próximos anos, décadas e séculos. Não fazer isso significa cometer genocídio culposo. Pelo ordenamento jurídico brasileiro, genocídio culposo não gera processo criminal, mas gera a obrigação de indenizar.

Todos esperam que o Ministério Público leia atentamente estas linhas e atue rigorosamente contra os genocidas. Provas do genocídio não faltam: a concentração de arsênio antropogênico nos córregos de Paracatu à jusante da mina está 190 vezes acima da máxima permitida pela Resolução 344/2004 do CONAMA e 744 vezes acima da concentração média natural verificada nos rios e córregos da região; a concentração de arsênio na poeira de Paracatu está 140 vezes acima da necessária para causar doenças, e a concentração de arsênio no corpo dos habitantes de Paracatu está acima do normal. Não existe dose segura para uma substância como o arsênio, e qualquer indício de arsênio antropogênico no corpo de uma pessoa é suficiente para uma ação indenizatória e medidas rigorosas contra os poluidores.

O MP está no encalço da mineradora. Para surpresa geral, não por causa do arsênio que polui, adoece e mata as pessoas, e sim por causa de um punhado de prata. É a idéia do lucro que está permeando as instituições públicas, como se o Estado tivesse a mesma lógica do mercado. Segundo o MP, a mineradora extraiu 41,7 toneladas de prata sem licença e não recolheu os royalties devidos aos cofres públicos. O MP quer o reembolso. Pela cotação da prata – 19 dólares por onça-troy (31,1 g) – o valor a ser reembolsado hoje aos cofres públicos seria uma fração dos cerca de US$25.5 milhões de dólares. Seria um exemplo de atuação lucrativa do MP, algo digno da melhor disciplina administrativa e contábil, ainda que os royalties salvos representem menos de 0,015% do prejuízo total causado pela Kinross ao Brasil (valor da prata escamoteada dividido pelo valor necessário para salvar as vidas humanas segundo a metodologia de cálculo da EPA).

A ética das finanças esmaece diante das trevas do genocídio. A lógica e a ética do Estado não podem ser as mesmas das empresas e dos bancos. O Estado deve proteger o ambiente e seus cidadãos, doa a quem doer, custe o que custar. Infelizmente, não tem sido assim. Sobre as vidas perdidas e a pobreza causada pelo arsênio, até agora não se ouve palavra, não se vê ação do Estado. Senhores procuradores: toda a prata e o ouro da mina de Paracatu não vale sequer uma vida humana perdida. Muito menos milhares ou milhões de vidas. Quantos ainda terão que morrer, para que o Poder Público e as instituições fiscalizadoras tomem atitudes seguindo a ética e a lógica do Estado?

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